Observatório Psicanalítico – OP 245/2021

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.  

 

Brasil vive regressão civilizatória 

Helena Daltro Pontual (SBPSP e SPBsb)

 

Estamos vivendo regressões políticas, econômicas, culturais e, mais do que isso, uma regressão civilizatória, todas evidenciadas por ataques à ciência, à democracia, desprezo por milhares de brasileiros mortos, negligências sanitárias, administrativas e falta de ações efetivas no combate à pandemia por parte do presidente da República e de alguns de seus ministros. O sentimento de indignação é um fato entre muitos brasileiros, pois o país vive uma tragédia das mais graves da história, com consequências econômicas (aumento da miséria e do desemprego), sociais (fome, bolsões de pobreza e abandono), políticas (corrupção e ataques à democracia) e psíquicas (luto, medo, depressão, ansiedade e negação).

 

A pulsão de morte nunca esteve tão presente, assim como mecanismos psicóticos da personalidade, tais como arrogância, prepotência e negação da realidade. Como psicanalistas, devemos participar de espaços democráticos, defender a ciência, denunciar a iniquidade e a necropolítica, debater ideias e propostas, contribuindo, assim, para análises políticas e antropológicas dos fatos. Essas análises, constatações e propostas foram feitas por psicanalistas filiados à Federação Brasileira de Psicanálise (Febrapsi) em debate promovido pelo Observatório Psicanalítico (OP) no mês de março de 2021. Esse texto trata dos principais trechos desse debate.

 

O que podemos apreender é que há um sentimento de indignação com o que acontece no Brasil e com os que defendem o presidente Jair Bolsonaro, pois “não enxergam que estamos indo para o precipício”. São altos os números de mortes pela pandemia (436.862 óbitos até o dia 18/05/2021), há falta de oxigênio nos hospitais e medicações para pacientes, além de “um espetáculo diário dos descalabros na administração federal da crise sanitária”. Os que ainda defendem o presidente podem ter “algo como a atração inconsciente por um pai da horda, figura dominante e autoritária, suposto salvador da pátria? A arrogância, a estupidez, a onipotência e a negação da realidade configuram um conjunto de características das partes psicóticas da personalidade. Minha esperança é ainda poder vislumbrar esforços civilizatórios consistentes triunfarem sobre a barbárie” (Julio Gheller, SBPSP).

 

Segundo Cláudio Eizirik (SPPA), “o Brasil vive uma tragédia. Ao longo da história humana, crueldade, violência, exploração dos mais fracos pelos mais fortes, perversão, mentiras, jogos sórdidos pelo poder, constituem a matéria de que é feita a nossa espécie, ao lado, naturalmente, de aspectos mais amorosos, reparadores e sublimes, como a arte e outras expressões. Denunciar a iniquidade e a necropolítica, em todas as suas formas, é uma atitude necessária e indispensável. Até quando este massacre de milhares de brasileiros será tolerado?”

 

Para grupos vulneráveis, ameaçados pelas mazelas sociais, o auxílio emergencial do governo “compra algum sentimento de segurança e é capaz de anestesiar considerações de caráter ideológico, destruindo a noção de temporalidade”. Além dessa constatação, a elite que ajudou a eleger Bolsonaro ainda está passiva diante dos fatos. Para melhor compreender a mentalidade desses grupos, podemos citar Herbert Rosenfeld (1910-1986), que propôs a metáfora da máfia interna de cada indivíduo para mostrar como uma parte do self se mantém tiranizada por um objeto que oferece segurança “em troca da renúncia à liberdade do SER”. Com isso,  “uma parte do indivíduo permanece infantilizada, dominada pelo medo que no caso em parte é real”. O totalitarismo despreza a experiência e os fatos “para construir um mundo fictício, apresentado como logicamente coerente e propositivo. Tal construção é balizada por uma ideologia persuasiva, assimilada como crença e destinada a gerar nos sujeitos uma convicção inabalável nas mensagens a eles dirigidas”. Esse conjunto de crenças e atitudes “é  mantido por um terror sub-reptício, uma espécie de propaganda interna que sugere que se abandonarem estas crenças permitirão que a insegurança penetre por todos os poros”. A insegurança desses grupos tem vários nomes: petismo, banditismo, Lula, FHC.

“O não pensar é fruto de uma estrutura defensiva” e não são apenas as chamadas elites que estão dando as principais bases de sustentação ao governo, mas também os grupos desfavorecidos, que já se sentiram incluídos, decaíram de seu status socioeconômico e se tornaram ressentidos. “O ressentido funciona na posição esquizoparanóide a partir de cisões do aparato psíquico. A psicanálise não substitui a análise política e antropológica dos fatos, mas pode contribuir para ampliar sua eficácia, conforme nos diz Elias M da Rocha Barros (SBPSP).

 

Mais do que uma regressão política, econômica e cultural, estamos vivendo uma regressão civilizatória, e a evidência desse fato é o desprezo pelos mortos por parte do governo federal, o que evidencia “desapreço e desamor com a vida dos brasileiros. Uma regressão antropológica e civilizatória desprezível, intolerável”. A pós-verdade e as fake news são também um problema pandêmico e o Brasil parece ser o país que mais se apoia na construção de mentiras. Graças ao poder capilarizado das mídias digitais “essas mentiras bombardeiam bolsões de fanáticos reforçando, permanentemente, a crença em falsas verdades. O fenômeno de massa já descrito por Freud em ‘Psicologia das massas e análise do eu’ se potencializa, se viraliza com muita facilidade, criando neorrealidades”. Esse fenômeno se aproxima da perversão, “na medida em que a realidade é desmentida e é criada uma neorrealidade, entendida como superior à realidade em si”. Por sorte, “vários setores que apoiaram o governo e sua política destrutiva, pressionados pela realidade inescapável da morte, acordaram e viram que se não pararem com a monstruosidade eles próprios e suas famílias morrerão” (Ruggero Levy, SPPA).

 

“O pensamento fanático se infiltra em todos os espaços”. Existe uma questão levantada por  Donald Meltzer (1922-2004) que diz o seguinte: “Quem não teria sido nazista na Alemanha nazista? Sabemos que poucos”. Segundo a Associação Psicanalítica Americana (APsiA), psicanalistas devem compartilhar valores “que incluem tolerância à diferença, busca da verdade emocional, empatia e escuta, compreensão do papel do trauma individual e coletivo, diversidade em todos os sentidos da palavra e igualdade humana como fundamental. É estarrecedor pensar que no fascismo podemos ser fascistas”.  No momento, a pulsão de morte está muito presente e muitos, “como num transe coletivo, caminham alegremente ou hipnoticamente para a morte”, conclui Sérgio Lewkowicz (SPPA).

 

O surgimento do populismo de extrema direita é uma ameaça que precisa ser combatida e compreendida. Paulo Henrique Favalli (SPPA) enfatiza: “É preciso que o saber psicanalítico ultrapasse os limites dos consultórios privados e se apresente ao mundo político com a autoridade de quem tem a contribuir para a construção de uma sociedade mais justa”.  Ney Marinho (SBPRJ) apontou para o grave problema da desigualdade social, que precisa ser combatida para que o país ingresse no século XXI. O atual presidente é o nosso “terceiro conto do vigário”, depois dos ex-presidentes Jânio Quadros e Fernando Collor, que trouxeram consequências funestas para o país. “Não podemos continuar brincando com a História”, conclui Ney Marinho.

 

O debate entre os psicanalistas das federadas tem nos ajudado a pensar que “quando nascemos no Brasil, principalmente se somos pobres, não brancos, não pertencentes a grupos majoritários, já nascemos ferrados. Isso se instala em nosso caráter e passamos e vida convivendo com os abusadores. Recusamos a percepção do abuso e invertemos as coisas, passando a acreditar em um objeto idealizado, poderoso, que vai nos salvar. De preferência, alguém que, supostamente, também foi ferrado. Um igual a nós. Alguém que nos entende […], nos salvará dos bandidos, acabará com os corruptos, prenderá, matará e expulsará todos os malvados”, segundo Roosevelt Cassorla (SBPCamp e SBPSP).

 

Nesse sentido, estamos na área masoquista – síndrome de Estocolmo, sedução perversa e outros termos psicanalíticos –, como nos lembra Cassorla, onde “os ferrados buscam ser salvos sem perceber que estarão ferrados. Estes idealizam seus ferradores e formam patotas fanáticas infantilizadas que nunca duvidarão das ideias de seu deus perverso. Somente podemos lutar contra isso se percebermos nosso lado ferrado e, principalmente, nosso lado ferrador. Poderemos fazer o luto por eles”.

 

Quanto à apropriação de símbolos judaicos pelos grupos de extrema direita, seu “’mito’ é de que o Messias chegará na Terra Santa e todos os judeus serão convertidos e se tornarão cristãos, na linha da Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Portanto, é um grupo ‘judeu’ que visa destruir o judaísmo”. Os grupos de ultradireita “visam construir um novo passado”, no qual “não existiu ditadura no Brasil, os negros foram salvos pela escravidão (presidente da Fundação Palmares, Sérgio Nascimento de Camargo disse que ela foi benéfica), o holocausto é inventado, o Brasil foi povoado por brancos, a despeito dos índios, e assim por diante”. Tais grupos também apelam para símbolos da Idade Média ou do nazismo, “que remetem a um passado mítico onde os brancos, supostamente heterossexuais e tementes a Deus, eram hegemônicos. Comunicam-se entre si por meio de sinais, como faziam os nobres e a Igreja. Evidentemente, há que criar uma narrativa convincente sobre os inimigos. Sem eles não é possível manter-se. Eles nos chamam para a briga. Não vale a pena. Será somente um desgaste. Não é questão de covardia – é questão de usarmos nossas forças de forma produtiva, reforçar os espaços democráticos, e é isso que estamos fazendo”, conclui Cassorla.

 

Uma sugestão de leitura é a entrevista de Michel Guerman ao Intercept (https://interc.pt/39h9wJD), na qual o historiador aborda a utilização de símbolos judaicos “como uma das estratégias malévolas de Bolsonaro e seus cúmplices de se ‘lavarem’ do seu antissemitismo – do qual pouco ou nada se fala, já que este ovo da serpente está muitíssimo bem maquilado”, como nos disse Sonia Eva Tucherman (SBPRJ).

 

Concluo este texto, elaborado a partir das contribuições dos colegas citados sobre a crise civilizatória brasileira, lembrando que os partidários de Bolsonaro dicotomizam as verdades e separam os fatos, e é com esse tipo de funcionamento que defendem a necessidade de trabalho sem respeitar o isolamento social, prestam continência à uma caixa de cloroquina (25/03/2021, em São Leopoldo-RS), louvam as vaias do Alvorada e criticam o governador de São Paulo, João Dória, entre outras ações. “Cada uma em separado foi formando uma unidade de ações, mais do que uma unidade de ideias”, conforme lembrado pelo colega Sylvain Levy (SPBsb).

 

Imagem “Morte e Vida”, de Gustav Klimt

 (Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

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