Observatório Psicanalítico-Editorial agosto/2022

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo. 

SÓDEPOIS 28 – Agosto/2022

“Onde queres revólver, sou coqueiro
E onde queres dinheiro, sou paixão
Onde queres descanso, sou desejo
E onde sou só desejo, queres não
E onde não queres nada, nada falta
E onde voas bem alto, eu sou o chão
E onde pisas o chão, minha alma salta
E ganha liberdade na amplidão

Onde queres família, sou maluco
E onde queres romântico, burguês
Onde queres Leblon, sou Pernambuco
E onde queres eunuco, garanhão
Onde queres o sim e o não, talvez
E onde vês, eu não vislumbro razão
Onde o queres o lobo, eu sou o irmão
E onde queres cowboy, eu sou chinês

Ah, bruta flor do querer
Ah, bruta flor, bruta flor

Onde queres o ato, eu sou o espírito
E onde queres ternura, eu sou tesão
Onde queres o livre, decassílabo
E onde buscas o anjo, sou mulher
Onde queres prazer, sou o que dói
E onde queres tortura, mansidão
Onde queres um lar, revolução
E onde queres bandido, sou herói

Eu queria querer-te amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e é de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero e não queres como sou
Não te quero e não queres como és

Ah, bruta flor do querer
Ah, bruta flor, bruta flor (…)” (O Quereres, Caetano Veloso 1984)

Ano de 1942. O mundo em plena Segunda Guerra Mundial, início da Batalha de Stalingrado, declaração de guerra do Brasil contra a Alemanha nazista e a Itália fascista, ano em que nasce Caetano Veloso. Músico baiano que dispensa maiores apresentações, gênio que, ao lado de seus companheiros de aniversário Gilberto Gil, Milton Nascimento, e Paulinho da Viola, traduz o Brasil em poesia há pelo menos 50 anos. Um dos maiores expoentes da cultura brasileira, um patrimônio vivo, representante de uma geração que viveu, sofreu e produziu as reviravoltas do século XX. 

Uma geração que viu o Brasil ser golpeado pelos militares, que perdeu amigos e amores nos vinte anos sangrentos da ditadura civil-militar, que foi agente de uma ebulição cultural. Uma geração que presenciou a chegada dos anticoncepcionais – acontecimento revolucionário na vida sexual das mulheres -, que, em 1983, gritou nas ruas do Brasil pelas “Diretas Já” e vibrou e se esperançou com a constituinte de 1988.

Tantos outros acontecimentos poderiam ser citados nesse século tumultuado e revolucionário. Ingressamos no século XXI acreditando que o Brasil daria certo. Entretanto, como num roteiro de um filme macabro e de mau gosto, presenciamos, incrédulos, a ascensão da extrema direita fascista ao poder. Um roteiro típico de um país que não se livra do passado escravocrata, militarista, sangrento e elitista. O retorno do que parecia superado, a repetição mortífera de um projeto que saúda torturadores, que vilipendia mulheres, negros, homossexuais, que destrói de forma galopante o que resta da Amazônia e dos povos indígenas. Uma geração que em 80 anos viu o Brasil entrar e sair e entrar de novo na lama podre da desesperança. E para não adoecer de Brasil, cantamos, escrevemos, produzimos e psicanalisamos.

Estamos há um mês das próximas eleições que definirão qual projeto de governo presidirá o país pelos próximos quatro anos. Na semana passada, assistimos ao primeiro debate dos candidatos à presidência. Um debate que, na opinião de muitos, foi desanimador. Como, em um país com a população de maioria negra, não havia nenhum entrevistador e/ou jornalista negro na bancada? Isso sem comentar o fato mais gritante de que entre os candidatos todos eram brancos. Sobre racismo, mal ouvimos falar. A respeito da crise climática e o futuro da Amazônia, pauta indispensável, nenhum dos candidatos abordou com a seriedade esperada. Aos mais críticos, surge a dúvida se os presidenciáveis estão de fato conectados com os verdadeiros problemas do Brasil.

No debate, como de costume, o atual presidente ofendeu as mulheres. Nada de novo no front. E nos perguntamos por que a violência contra as mulheres segue sendo banalizada, por que os homens são tão pouco, ou quase nunca, penalizados, por que seguimos no ranking dos 5 países que mais cometem feminicídio? Enquanto psicanalistas também nos questionamos sobre a repetição compulsiva desse tipo de violência.  

No mês de agosto, Gabriela Seben (SBPdePA) escreveu sobre o recém lançado documentário que conta a pavorosa história do feminicídio de Daniela Perez, ocorrido em 1992 e protagonizado por um colega da atriz. Numa costura entre fatores socioculturais e aspectos intrapsíquicos, a autora nos impulsiona a refletir sobre o repúdio ao feminino. No ensaio intitulado “Pacto Brutal para o assassinato das mulheres brasileiras” Gabriela escreve: “O “continente negro” teorizado por Freud provoca medo e fascínio, e gera o desejo de dominá-lo ou expurgá-lo.”

Talvez nem tudo esteja perdido. Se, em pleno 2022, temos  que testemunhar ameaças de golpe ressurgirem dos porões, também pudemos presenciar um levante da sociedade civil em defesa à nossa frágil e sempre ameaçada democracia. Dia 11 de Agosto foi marcado, novamente, por um momento histórico. Em várias cidades do país, pessoas representantes de diferentes gerações e classes sociais se uniram na leitura de uma carta às brasileiras e brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito. Sobre esse acontecimento, o psicanalista Julio Hirschhorn Gheller (SBPSP) escreveu um ensaio entusiasmante que impele o psicanalista a pensar sobre seu pretenso lugar de neutralidade frente às questões políticas. Nas palavras do autor: “Existe um tipo de neutralidade que é mortífera, só pode conduzir à desvitalização”.

Mesmo que o psicanalista individualmente opte por uma neutralidade política, as instituições representantes da psicanálise não podem se abster de uma posição, pois são parte atuante da pólis, a neutralidade inexiste. O silêncio é também uma posição, como diz no velho ditado: quem cala consente. O psicanalista e atual presidente da FEBRAPSI, Hemerson Ari Mendes (SPPEL), escreveu um ensaio que relembra momentos em que a Federação Brasileira de Psicanálise se manifestou e se posicionou ao lado da Democracia, assinando e publicando manifestos. O autor, enquanto presidente da FEBRAPSI, reitera a posição democrática da instituição, afirmando: “ (…) há alguns anos a FEBRAPSI está atenta e tem se manifestado em defesa dos pilares da democracia e, por conseguinte, das adequadas condições para o exercício da psicanálise, do pensar… e do viver.”

Em Agosto, seja pela proximidade com as eleições, seja pelos manifestos impulsionados pelas ameaças de golpe, o tema da democracia inspirou colegas. Lúcia Passarinho (SPBsb), em seu ensaio “A importância do OP para nós, psicanalistas”, como o título já revela, escreve sobre a relevância de termos dentro da FEBRAPSI um espaço democrático de debates e reflexões, como o Observatório Psicanalítico. Para a autora, “O OP proporcionou a compreensão de nossa presença, como cidadãos e como categoria profissional, nos atos de defesa do direito à liberdade. Sim, isso é psicanálise.”

O Observatório Psicanalítico é também um espaço de compartilhamento de experiências. O trio de colegas paulistas Oswaldo Ferreira Leite Neto, Ludmila Frateschi e Márcio Roque (SPBSP ) contaram a experiência de atuarem como psicanalistas na região da Cracolândia em São Paulo. A partir do texto escrito por eles, temos a dimensão da escuta do analista para além dos consultórios privados, localizados em zonas nobres da cidade. Os autores perguntam e nos convocam a pensar, já desde o início da escrita, quando no título escrevem: Vidas na Craco Importam? E ao longo do ensaio, afirmam: “Gente é gente, gente precisa de gente. Quando passa a existir gente que não é tratado como gente e o resto do mundo se omite, é fascismo e é genocídio.”

No mês que terminou publicamos cinco textos inéditos. Além dos ensaios, também produzimos o podcast Mirante, dando continuidade ao nosso projeto de levar a psicanálise e os psicanalistas da FEBRAPSI para além dos muros de nossas intuições, no mês de Agosto encerramos a temporada sobre Relações Raciais no Brasil com os últimos episódios: “A Artista e o processo criativo”, que contou com a participação da artista Olívia Araújo e da psicanalista Fernanda Marinho (SBPRJ), e “Um novo mundo” onde  escutamos o filósofo Renato Noguera e o psicanalista Ignácio Paim (SBPDEPA). Aproveitamos o espaço para agradecer, mais uma vez, à Wania Cidade (SBPRJ), colega que teve uma participação especial e fundamental nesta temporada. Os episódios estão disponíveis nas maiores plataformas de podcast.

O tema da próxima temporada do Mirante não foi difícil de escolher. Debateremos, com convidados e colegas da Febrapsi, a relação entre Psicanálise e Democracia. Como vimos nos ensaios publicados, a Democracia tem sido um tema recorrente entre nós, gerando debates acalorados em nosso grupo de e-mails. Democracia e eleições estão na pauta do dia dos brasileiros e nós, psicanalistas, temos muito a contribuir nessa discussão. Acompanhem nosso podcast!

Para divulgação de nossos ensaios e dos episódios do Mirante, contamos com o perfil do OP (@observatorio_psicanalitico) no Instagram, plataforma digital que possibilita um maior alcance do nosso trabalho. No Instagram, além dos ensaios inéditos, relembramos textos publicados em outros momentos. Nesse mês, republicamos os ensaios:

– João Gilberto e os Oxímoros, de Miguel Calmon (SBPRJ)

– Fique comigo, de Vanessa Corrêa ( SBPSP)

– Sobre líderes, liderados, infâmias e resistência, de Cláudio Laks Eizirik (SPPA)

– Tempo Morto: Cinema e Pandemia, de Silvana Rea (SBPSP)

– Fake News, um olhar psicanalítico, de Cíntia Albuquerque (SPBSB)

– Arte e psicanálise: do episódio ao pensamento, de Celso Gutfriend (SBPDEPA)

Todos os textos podem ser acessados pelo link disponível no perfil do OP no Instagram.

Iniciamos o Sódepois com a letra de uma canção de Caetano Veloso que remete ao desejo. Como psicanalistas, sabemos que o desejo nos move, comove e demove. Assim como Caetano cantou sobre o desejo, Freud falou sobre  o amor: “ (…) Deve-se começar a amar para não adoecer, e é inevitável adoecer, quando, devido à privação, não se pode amar.” (“Para uma introdução ao narcisismo”, 1914). Que frente a tantos desafios que estão por vir, não nos falte desejo, nem amor para seguirmos sonhando, cantando, lutando e psicanalisando. Um bom início de setembro a todos. Um abraço afetuoso,

Equipe de curadoria,

Beth Mori, Ana Valeska Maia, Daniela Boianovsky, Rafaela Degani e Renata Zambonelli

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Editorial

Palavras-chave: Observatório Psicanalitico, 11 de Agosto, Psicanálise, Democracia, Violência contra as mulheres 

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Categoria: Editoriais
Tags: 11 de Agosto | democracia | observatorio psicanalitico | Psicanálise | Violência contra as mulheres
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