Geração álcool gel?

Observatório Psicanalítico – OP 239/2021

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo. 

Geração álcool gel? 

Carolina Freitas e Fabiana Britto Grass (SBPdePA)

Canção do dia de sempre 

Tão bom viver dia a dia…

A vida assim, jamais cansa…

Viver tão só de momentos

Como estas nuvens no céu…

E só ganhar, toda a vida,

Inexperiência… esperança…

E a rosa louca dos ventos

Presa à copa do chapéu.

Nunca dês um nome a um rio:

Sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua,

Tudo vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança

Das outras vezes perdidas,

Atiro a rosa do sonho

Nas tuas mãos distraídas… 

(Mário Quintana)

Nosso poeta gaúcho é sempre uma inspiração para iniciar uma nova escrita de como viver o dia a dia, com sonhos e esperanças vívidos. Assim, fazemos o convite para pensarmos a travessia do traumático nas nossas crianças e adolescentes, enlaçada de poesia e afeto. 

O que gera a ação nesta nova geração? Tantos questionamentos frente aos impactos da pandemia na análise de crianças e adolescentes, que meramente nos restam especulações clínicas para, pretensiosamente, compreender esses borrões que permearão o desenvolvimento infantojuvenil. Será que já poderíamos nomeá-los como geração – geradores de uma nova ação – das máscaras e do álcool gel? Ficarão as marcas do infantil tatuadas pela intrusão da pandemia? 

Acreditamos que já estão sendo desenhadas. Quais registros ficarão como marcas mnêmicas e representações para nossos futuros adultos? Que geração estará por vir? 

Ao longo deste atravessamento pandêmico, nossas crianças foram arremessadas para aulas online: a amputação do convívio com os colegas de forma presencial tomou lugar para o virtual. Ainda, a restrição da presença com avós e familiares abriu espaço para a estreita convivência com os pais. Assim, a metamorfose, como processo de mudança e crescimento, é vivenciada de forma solitária e afastada do espelhamento com o grupo: o home office e o home schooling formam a vibe do momento. Mas quais os impactos disso tudo na psique das nossas crianças e adolescentes? A rua, como espaço lúdico e transicional, tornou-se, de repente, ambiente perigoso, inseguro e insalubre; as máscaras e frascos de álcool gel entraram como os novos desinfetantes do vínculo social; o abraço cedeu espaço para o distanciamento e o isolamento se tornou a nova saída de sobrevivência. De que maneira tudo isso vai rechear o emocional? 

Pensamentos e ritos obsessivos, medos, ansiedades, inseguranças, depressões, irritabilidade, sonhos pandêmicos, sentimentos de solidão, tristeza, maior dependência tecnológica e alimentar, atrasos na fala e na psicomotricidade, são apenas um recorte do que estamos vivenciando na travessia do traumático em nossos consultórios.

Mas estamos todos afetados e encharcados pelo momento pandêmico, como sinaliza a saudosa Janine Puget, em seu texto “Mundos Superpostos”. Tanto analisandos quanto analistas foram atravessados pelo novo real. Resta-nos buscar, no nosso imaginário, alternativas para a nova “clínica virtual”. Ao longo da trajetória, vamos aprendendo, nos desenvolvendo, nos reinventando e nos questionando todo tempo. O quanto uma tela entre nós pode ser suficiente e/ou por quanto tempo sustentaremos um encontro no qual alguns dos sentidos foram extirpados? 

Em nome do instinto de sobrevivência, aceitamos as novas exigências; uma catástrofe social mundial nos une num compasso de espera, e a vida vai tomando uma direção totalmente desconhecida por nós, que estamos interligados pelo medo, pela dor e pela esperança de uma vacina que nos imunize. Sejamos indígenas em aldeias no Brasil, aborígenes da Austrália, nova-iorquinos, judeus, turcos, indianos, ou melhor, de todas as nacionalidades, realidades  sociais e religiões, neste momento, mesmo que em condições diferentes, lutamos pelo mesmo objetivo: a vida de cada um de nós e de toda humanidade. De um lado, nova-iorquinos vivendo em suas coberturas de Manhattan; de outro,  sírios habitando campos de refugiados no Líbano configuram, como exemplo, a diversidade do contexto social do momento. 

Evidentemente, cada povo e individuo terá acesso singular ao mundo virtual que se apresenta. Na clínica infantojuvenil, fomos empurrados a conhecer outras expressões de linguagem que o real impôs. Nesse sentido, os jogos online foram uma das ferramentas inclusas como um novo instrumento de trabalho; ou seja, o campo analítico modificou-se como reflexo e consequência do ambiente atual, exigindo, assim, uma reciclagem imediata. 

Após um ano dessa experiência, ousamos perguntar-nos: o virtual pode dar conta ou tem seus limites? O quanto o olhar do analista pode ser sentido e experienciado através da tela de um celular ou computador? Algumas evidências clínicas nos mostraram que os limites sempre existirão e precisam ser pensados por nós todo tempo. Acreditamos que nossas crianças e adolescentes muito nos ensinaram sobre o virtual. Com humildade, aprendemos com eles, inclusive, que a corporeidade para esta fase do desenvolvimento é de extrema importância, assim como o são as múltiplas identificações com seus pares e grupos que foram, de alguma forma, congeladas pelas telas. 

Nosso desejo como analistas é que esta esterilização necessária para o combate à pandemia não faça o mesmo com nossa crença no encontro, e que a criatividade seja uma saída de elaboração e simbolização desse trauma coletivo. 

Voltamos à poesia, agora com uma autora que precisou lidar com o trauma individual e coletivo que viveu seu povo devido à perseguição aos judeus durante a Guerra Civil Russa: 

“As pessoas sem imaginação podem ter tido as mais imprevistas aventuras, podem ter visitado as terras mais estranhas.

Nada lhes ficou. Nada lhes sobrou.

Uma vida não basta ser vivida: também precisa ser sonhada.”

– Clarice Lispector

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

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