Observatório Psicanalítico – OP 212/2020
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Esses caras…
Rodrigo Lage Leite (SBPSP)
A pandemia nos tirou a Flip. Pelo menos com os componentes que seu nome promete: uma festa, literária, internacional, em Paraty. Festa de livros, de mesas esperadas com autores que amamos, saraus inesperados em madrugadas animadas, passeios pelas ruelas de Paraty, e, com sorte, uma noite de céu limpo, uma lua e um conhaque que, como diria Drummond, “botam a gente comovido como o diabo”.
Nos embalos desse ano de estupefação e morte, e do mau gosto que a recrudescência burlesca da ultradireita evoca, o cancelamento da Flip em sua versão presencial é só mais uma frustração num contexto de tantas tristezas maiores e perdas incalculáveis.
Foi, entretanto, a notícia inesperada de uma mesa na Flip virtual, intitulada “Transições”, que anunciou o que viria a ser um alento: o encontro de Paul B. Preciado e Caetano Veloso – e de seus livros, “Um apartamento em Urano” e “Narciso em férias”. Paul, filho de Burgos, uma cidade-reduto do franquismo espanhol, e Caetano, filho de Santo Amaro da Purificação, na Bahia, dedicaram aproximadamente uma hora e meia a conversar – também sobre seus livros!
As histórias de ambos – sim, atravessadas por deliciosas memórias e ficções – “impossível não haver ficção”, como dirá Caetano, culminaram na conclusão de que em tempos sombrios, com um “cheiro à direita”, como dirá Paul, há que se optar pelo otimismo, seja o otimismo patológico autodiagnosticado por Preciado, seja o otimismo programático proposto por Caetano, impregnado pela responsabilidade de se manter “atento e forte” frente aos movimentos do mundo.
O clima é esse! Ao falar da experiência descrita em “Narciso em férias”, Caetano relembra os dias em que passou trancafiado numa solitária sem qualquer explicação, após ser conduzido de São Paulo ao Rio de Janeiro, também sem nenhuma explicação, durante a ditadura militar brasileira de 1964, acusado de produzir “músicas subversivas e desvirilizantes”. Segundo ele, durante os dias na solitária, sentia seu “narcisismo básico desligado de uma maneira total”, como “se a vida tivesse sido sempre aquilo ali”…
Talvez, a fala encontre eco em nossa perplexidade atual, nos momentos em que nos indagamos, diante da truculência armamentista, da destrutividade da gestão ambiental, do racismo estrutural e da cafonice existencial (esta expressão roubada de Fernanda Young) presente nos discursos das “pessoas de bem”, se a vida não teria mesmo sido sempre assim…
Mas “músicas subversivas e desvirilizantes” sempre abrem espaços para travessias. E embora risonho e afetivo, o diálogo entre Paul e Caetano, mediado por Ángel Gurría-Quintana, dá espaço para um esboço do revolucionário pensamento de Paul B. Preciado sobre a “epistemologia da diferença sexual”, proposição filosófica que – penso – não pode ser ignorada pela psicanálise contemporânea.
Paul fala de um “colapso epistêmico”, em que a lógica binária homem-mulher, masculino-feminino, heterossexual-homossexual, é posta à prova pelas experiências subjetivas e pelos discursos daqueles que historicamente têm sido tratados como “corpos subalternos”. Segundo ele, o binarismo não é mais que um mapa, uma epistemologia que corresponde ao patriarcado colonial e que está em franco processo de desabamento: “A questão é saber se não podemos pensar numa epistemologia que dê conta da radical multiplicidade da vida: não binária, multiaxial”.
Seja para concordar ou discordar, acrescentar ou (se)transformar, poderá a psicanálise prescindir deste debate? Poderá fazer ouvidos moucos às vozes que interpelam a epistemologia da diferença dos sexos e que propõem questões repletas de consequências teóricas e clínicas para a psicanálise?
Uma lufada de ar fresco este encontro entre o “subintelectual de miolo mole” Caetano e o “dissidente do sistema sexo-gênero” Preciado. Está disponível na página da Flip no Youtube para quem quiser assistir.
Um novo “relançar de apostas” em que a inteligência volta ao lugar de algo valorável, admirável, e ressitua a delicadeza no âmbito dos afetos. Belo encontro coroado com a promessa de Preciado de que lerá “Grande Sertão: Veredas” instigado pela lembrança de Caetano sobre a pergunta de Manuel Bandeira em carta a Guimarães Rosa. Por que não deixar Diadorim “homem até o final da história”? Segundo Caetano, seu psicanalista considera a pergunta uma estupidez. Ele próprio a considera fascinante. Penso que seria auspicioso ouvir a promessa dos psicanalistas de que lerão os livros de Preciado – “Manifesto contrassexual”, “Texto junkie” e “Um apartamento em Urano” – antes de tentar respondê-la.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Foto: montagem de O Globo sobre fotos de divulgação
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