Dizem que sou louco

Observatório Psicanalítico – OP 212/2020

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Dizem que sou louco 

Liana Albernaz de Melo Bastos (SBPRJ)

 

Mais de 57 milhões de brasileiros elegeram Bolsonaro em 2018. Muitos deles seduzidos pelo “vamos acabar com isso aí”. Esta não era apenas uma bravata de campanha. Era – e vem se efetivando – como um projeto de desmonte do país e da nossa democracia.

 

Diante de falas e ações que pareciam desatinadas, alguns o chamavam de louco. Nada mais enganoso. Bolsonaro tem servido com uma coerência espantosa àquela pequeníssima mas poderosa parcela que ganha com este projeto. Também não nos iludamos que foi neste governo que tudo começou. O impeachment da Dilma atendeu a este propósito. E não se trata de teoria conspiratória ou de delírio persecutório.

 

O caminho célere para a barbárie para o qual o Brasil está sendo conduzido iniciou-se no governo Temer. O congelamento por 20 anos do orçamento de políticas sociais atingiu em cheio o SUS. Na pandemia que nos assola, tem sido o SUS, apesar dos cortes, que nos tem valido. Também sobre ele repousam nossas esperanças de vacinação gratuita para a população.

 

É neste clima de angústia e desamparo que o atual governo quer alterar a Política Nacional de Saúde Mental (PNSM). Temer, com suas mesóclises – e a ele não se imputava loucura – iniciou o ataque. (CRUZ, Nelson F. O.; GONÇALVES, Renata W.; DELGADO, Pedro G.G. Retrocesso da Reforma Psiquiátrica: o desmonte da política nacional de saúde mental brasileira de 2016 a 2019. Trabalho, Educação e Saúde, v. 18, n. 3, 2020, e00285117. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00285).

 

A luta antimanicomial tem sido longa. Desde 1987, com o  Manifesto de Bauru, no II Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental, que os avanços foram sendo construídos. (https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2017/05/manifesto-de-bauru.pdf)

 

Lembro-me de como me sentia orgulhosa de ser psiquiatra e participar do processo de desinstitucionalização  que previa a extinção dos manicômios. Nunca mais holocaustos como o de Barbacena. Nunca mais Limas Barretos em asilos mentais. Nunca mais Juqueris ou Colônias Juliano Moreira.

 

A proposta de alteração da Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas que o MS agora faz é um desmantelamento destes avanços que pode ter como consequência a desassistência à população que necessita de cuidados de saúde mental garantida, hoje, pelas Redes de Assistência Psicossocial (RAPS) que funcionam integradas aos Programas de Saúde da Família (PSF). Os serviços residenciais terapêuticos, Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Centros de Acolhimento, o desestímulo às longas internações em hospitais psiquiátricos tem, na proposta do atual governo, contingenciamento de recursos.

 

Sob a alegação do aumento de usuários de drogas (desmentida pela FIOCRUZ , “Pesquisa Nacional sobre o uso de crack”, 2014), o governo financia as comunidades terapêuticas de cunho religioso contrariando a laicidade do Estado e ferindo direitos humanos com internações compulsórias de longa duração numa abordagem proibicionista e punitivista.

 

A nova Política Nacional Sobre Drogas (decreto 9.761 de 14 de abril de 2019) coloca o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD) nos campos das “políticas de educação, assistência social, saúde, trabalho, esportes, habitação, cultura, trânsito e segurança pública”. Prevê apoio financeiro não apenas ao trabalho das comunidades terapêuticas, mas às “entidades que as congreguem ou as representem” (…) e ao seu “aprimoramento, o desenvolvimento e a estruturação física e funcional” (Brasil, 2019g). Tem potencial de ampliar o estigma ao propor campanhas afirmando que o usuário de drogas financia grupos criminosos.

 

Também a apresentação da eletroconvulsoterapia como se fosse um exemplo de “disponibilização do melhor aparato terapêutico” ignora os registros históricos do ECT – eletroconvulsoterapia – como instrumento de tortura e punição nas instituições manicomiais.

 

Crianças e adolescentes deixam de ter cuidados especiais. “Não há qualquer impedimento legal para a internação de pacientes menores de idade (sic) em Enfermarias Psiquiátricas de Hospitais Gerais ou de Hospitais Psiquiátricos”. (Nota Técnica n. 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS, 2019)

 

O desmonte da Política Nacional de Saúde Mental tem uma lógica. “Follow the Money”: os empresários dos hospitais psiquiátricos, muitos deles encastelados na atual diretoria da Associação Brasileira de Psiquiatria, as instituições religiosas que apoiam o governo e mantêm “comunidades terapêuticas”, o aparato repressivo legal ou miliciano abastecido pela indústria de armas, todos estão a defender seus interesses. O que parece menos importar é a ponta dos desamparados, desassistidos, abandonados.

 

Psicanalistas têm compromissos éticos. Temos compreendido no corpo e na mente – e esse é um ganho da pandemia – que somos afetados pelo coletivo. A saúde mental de cada um tem a ver com a de todos.

As instituições psicanalíticas brasileiras devem se posicionar em repúdio à alteração da Política Nacional de Saúde Mental. Lutar pelo cuidado em liberdade, pela garantia de direitos e cuidados no território (RAPS), pela consolidação e ampliação de serviços de atenção psicossocial, pela garantia de leitos psiquiátricos em hospitais gerais é também nossa tarefa. Loucura seria nos mantermos alienados do abismo para o qual este governo nos empurra.

 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

 

Foto do Museu de Imagens do Inconsciente –  Nise da Silveira 

 

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Os ensaios do OP são postados no site da Febrapsi. Clique no link abaixo:

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