Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
Editorial – agosto/2021
Agosto, mês de 31 dias que sucede outro mês de 31 dias, é tido na crença popular como um mês demasiadamente longo e cheio de mau agouro, “agosto mês do desgosto” ou “agosto mês do cachorro louco”. Há rumores que isso se deva ao fato de que era o mês em que as condições climáticas elevam o número de cadelas no cio e deixam os cães “loucos por elas”, mas que isso seria também uma metáfora para a agressividade aumentada e o risco de que coisas ruins aconteçam.
Não sabemos como foi o índice de cios das cadelas, mas sabemos que o clima em muitas regiões esteve alterado, diferente do que seria esperado nessa época do ano, agravando a escassez de energia, (e levando ao aumento das contas de luz) e, em algumas regiões, a escassez de água. Há uma forte correlação destes fenômenos com o desmatamento amazônico e, sendo agosto também o mês em que se comemora o dia da Amazônia, tivemos um incremento dos movimentos de denúncia e de proteção à floresta. Articula-se a este tema a discussão da aprovação ou não do marco temporal para a demarcação de terras indígenas. Se, por um lado, está em jogo a necessidade de fazer valer algum direito indígena e alguma reparação ao genocídio de nossos povos originários, por outro impera a pressão do modelo tradicional de agronegócio para que haja mais terras disponíveis para a exploração e com menos regras. E, no caso deste governo, também opera a pressão para a liberação do “empreendedorismo” criminoso de grileiros e invasores de terras.
Já a agressividade, sabemos que anda mesmo em alta.
Pelo viés mais óbvio, ela está na ameaça recorrente à democracia e às instituições democráticas, num nacionalismo que soa estranho (as bandeiras do Brasil hasteadas em alguns estabelecimentos como supermercados e lojas chamam atenção), na insegurança provocada pelo risco de que o braço armado do Estado ceda às paixões individuais de quem empunha as armas. Nesse sentido, era muito grave a ameaça de que os policiais pudessem aderir ao lado pró-governo das manifestações de 07 de setembro.
Há agressividade na tolerância a mais de 580 mil mortos por covid-19 no Brasil.
E há também agressividade nas posições de resistência, vistas por exemplo nos movimentos contra o marco temporal ou naqueles que garantiram o direito de que os grupos contrários ao governo também se manifestassem no 07 de setembro.
Às vezes necessária para que se reaja a uma opressão violenta, os efeitos da agressividade nunca são simples de administrar. O complemento necessário para que ela não seja apenas destrutiva é – sempre será – a capacidade de sonhar.
Passamos, assim, agosto entre a destrutividade e o sonho também neste espaço do Observatório Psicanalítico. Cintia Xavier de Albuquerque (SPBsb) abriu os trabalhos do mês com um texto sobre as fakenews e o que leva alguém a produzi-las. Tratando daqueles que assumem como guias as Verdades únicas, nos diz: “Mas, e se a Verdade é mentira? Bion, em seu artigo ‘Mentiras e o pensador’, diz que mentir dá trabalho psíquico, pois a mentira demanda um pensador. A verdade, não. Ela pode ser pensada com a chegada do pensador. Se ele não chegar, ela permanece inalterada. O mentiroso contumaz não considera a existência do outro internamente, este é apenas um obstáculo para saltar. Imaginemos isso em escala industrial no problema das fake News”.
Sylvain Levy (SPBsb), em “Taliban e Afeganistão: história recente em região milenar” nos leva a pensar em outro fenômeno marcado pela violência esse mês, desta vez no Afeganistão, na tentativa de elaborar as imagens indescritíveis e inomináveis das tentativas de fuga do Afeganistão após o Taliban assumir o poder. Sylvain nos convida a pensar em possíveis aproximações com o Brasil: “É impossível não fazer um paralelo entre o movimento talibã para chegar novamente ao poder e o atual governo brasileiro. O talibã, durante vinte anos, solapou a democracia afegã, sorrateiramente através das prédicas religiosas dos ulemás e mujahidins, e abertamente mediante o uso do poder armado, da força e da intimidação. Desde que assumiu o poder, Bolsonaro e seu grupo de crentes vem trilhando o mesmo caminho, ora sorrateiro, mediante o uso da internet, de fake news e de fake facts, ora abertamente arrotando poder e conluio com as forças armadas e ameaçando abertamente a democracia brasileira”.
E, frente às ameaças democráticas, “Antes do veneno do cálice derramar”, de Hemerson Ari Mendes (SPPel), nos convoca à posição, enquanto instituição. Faz um texto comprometido com o ideal de democracia. E alerta para o perigo de as instituições psicanalíticas se omitirem, em alusão ao que já houve no Brasil na época da Ditadura: “Enfim, vacinaremos nossas instituições para que sobre elas não recaiam as sombras da Casa da Morte de Petrópolis – com sua nova fachada – ou bovinamente aguardaremos a imunidade de rebanho?”.
Curioso que o resgate da capacidade de sonhar tenha se dado – ao menos aqui no OP – pelo esporte. Num ano em que tivemos menos chance de movimentar nossos corpos, em que a virtualidade ganhou tanto espaço, são os corpos que nos põem vivos de novo. “O Brasil na Olimpíada, da náusea à flor”, de Mário Barcellos (SPPA), traz essa bela construção que é o poder ver-se na humanidade do outro ao ver um atleta dando o máximo de si, vencendo ou falhando numa prova olímpica. Brinca com a ideia de sonho a partir de seu filho, que diz que “é possível sonhar qualquer coisa”. Já Ariana Marinho (SBPSP) nos brinda com um texto sensível e delicado: parte da olimpíada e dessa capacidade que têm alguns atletas de vencerem apesar de um país que joga contra eles. E sonha, nos provocando a sonhar junto, fazendo chorar com o dar-se conta de que, de fato, vem sendo muito difícil nos manter imaginando outro mundo possível, fora da violência que já está mesmo ficando muito cotidiana.
Temos a sensação de que esse agosto continua em setembro. E, vindo assim esse editorial mais tarde, contemplamos aqui o primeiro texto deste outro mês, tão apropriado, na véspera do dia da Independência, “Clube de leitura X Clube de Tiro”, de Vanessa Figueiredo Corrêa (GEP Ribeirão Preto e Região – SBPSP). Que sigamos, ainda que entre os livros e tiros, defendendo o sonho e a imaginação para vencer as grandes verdades mentirosas, a violência e as mortes sem fim.
Equipe Curadoria
Beth Mori, Daniela Boianovsky, Ludmila Frateschi e Rafaela Degani.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).
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