Editorial – Observatório Psicanalítico – março/2021
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
Editorial – Março de 2021
Terminamos fevereiro e iniciamos março com obituários. Este é o retrato do Brasil que ainda segue sob a regência de mãos irresponsáveis.
Vivemos um momento de profunda tristeza. Diariamente, tomamos conhecimento do altíssimo número de mortes: frente ao agravamento da pandemia, o pouco caso do governo federal, seguido por outros tantos governadores, prefeitos, políticos e parte da população que o apoia. O genocida (pandecida, como muitos indignados com a situação em que nos encontramos já se referem a ele), nomeado de “mito” por seus seguidores fundamentalistas, continua se divertindo com a nossa tragédia. A última que vimos foi a sua imitação de “pessoas sem ar”. Ele segue na “brincadeirinha de troca-troca” de ministros, em vez de recomendar distanciamento físico e uso de máscaras e de comprar vacinas para toda a população, como todos sabemos que é o que tem de ser feito. “Marca de um irracionalismo destrutivo composto de negacionismo delirante, indiferença à dor, retórica paranoica e bravatas de virilidade” (Dunker, Boitempo).
Por aqui, foram diversos os ensaios escritos por colegas que expressam seus descontentamentos com as mazelas perversas a que estamos todos submetidos. Nas palavras de Gabriela Seben (SBPdePA) sobre nosso último Editorial: “os textos do OP têm sido essenciais neste momento tão difícil de pandemia e pandemônio político e sanitário… O afeto, a troca de ideias e o pensamento crítico ainda me parecem as alternativas possíveis para enfrentar o sombrio desses tempos difíceis e intermináveis, com ares de ‘dia da marmota’, só que sem o glamour do maravilhoso Bill Murray para alegrar a cena.”
Neste clima “mais do mesmo”, iniciamos o mês de março no OP com as reverberações do ensaio escrito por Cláudio Eizirik (SPPA), no mês de fevereiro, sobre aquilo que Leopold Nosek (SBPSP) nomeou de “uma morte injusta”: a de nossa colega psicanalista Marlene Araújo, por Covid, deixando-nos órfãos de sua amizade sempre rica e cheia de possibilidades. Tocado por esta perda, manifestou seu pesar Valton Miranda Leitão (SPFort): “É mais uma para a banalização numérica que breve chegará ao meio milhão, revelando o descaso, a incompetência e a indiferença do clã genocida que habita o Palácio do Planalto! As palavras perderam a importância na tragédia nacional, mas os psicanalistas precisam revigorá-las. Portanto, a todos os responsáveis pela morte de Marlene cabe o adjetivo: canalhas!”
Na seqüência, Mauro Campos Balieiro (SBPRP) nos ofertou um “obituário-denúncia” da morte, também por coronavírus, do Cacique Aruká Juma. “O ÚLTIMO DOS JUMA” foi, segundo Eliane Andrade (SBPMG), um “texto de arrancar nosso coração! É uma tragédia o que este país está vivendo, tanto na governança quanto na não-reação de seus cidadãos! Haverá país amanhã????”. Josi Souza (SBPRP) engrossou o coro: “Nossos corações estão sangrando. Os povos originários estão sendo dizimados, nosso povo está sendo conduzido à morte. A cada morte, morremos todos nós, um pouco mais”.
César Augusto Antunes (SBPdePA) abordou então o abuso da destrutividade no ensaio “ADEUS ÀS ARMAS: EU QUERO UMA METRALHADORA”. O autor nos lembra que “talvez existam relações inconscientes, para além da mera fatalidade, que fizeram coincidir uma pandemia viral com um novo decreto sobre a liberação de armas de fogo na legislação brasileira”. E propõe: “Freud seguidamente chamava-nos a atenção para o paralelo existente entre os conflitos relativos às pulsões de vida e pulsões de morte; desejos amorosos e destrutivos no interior do indivíduo e sua ocorrência a nível social. (…). Para cada ódio mal escondido no fundo da alma, uma conduta piedosa; para cada inveja, uma compaixão tentando aplacar as terríveis forças disjuntivas da original pulsão de morte.”
Em “COMO ATHENA PODERIA ENFRENTAR ARES?”, Ana Valeska Maia Magalhães e Lina Schlachter Castro, ambas da SPFOR, celebraram o 8 de março, dia internacional da mulher, com um importante ensaio contra “o macho ‘imbrochável’, como disse Bolsonaro no discurso de Tianguá, no CE, ao mostrar sua “face fálica, onipotente, carregada de defesas maníacas. Um macho poderoso que influencia outros”. O texto, escrito frente ao aumento dos feminicídios no país durante a pandemia, mereceu o comentário de Fernanda Lacerda (SPBsB): “de forma tão clara e contundente, escancaram essa guerra e, consequentemente, nos impele a pensar em ações” contra o feminicídio: “De tão entranhado na corrente sanguínea da sociedade brasileira, o machismo estrutural é tolerado ou até recepcionado. Está na brincadeira que ridiculariza a mulher. Está na naturalização da desigualdade salarial. Está na regulação dos corpos femininos.” (nos falam as autoras)
Ainda na mesma temática, Eliane Andrade (SBPMG), em um breve ensaio intitulado “UM HOMEM PRA CHAMAR DE SEU”, comenta a violência contra as mulheres e crianças neste cenário pandêmico, com o aumento de casos de feminicídio. Diz que muitas vezes, a mulher permanece em relações conjugais violentas, pois existe, ainda, uma “apologia cultural sobre a necessidade delas de um homem para ‘completá-las”’.
A condição das mulheres na pandemia também foi o tema da crônica de Juliana Lang Lima (SBPdePA), intitulada “A SOBRECARGA DAS MULHERES NA PANDEMIA – QUEM IRÁ NOS CARREGAR?, que nos faz lembrar que a nossa luta é diária: seja como profissional, psicanalista, seja com os cuidados e preocupações da casa. Um relato com o qual muitas de nós nos identificamos. Exaustas, cada uma tem se defendido como pode. Ou não pode! Ana Paula Terra Machado (SBPdePA) comenta que esta “crônica do cotidiano mostra o quanto somos múltiplas e, ainda mais neste tempo insólito, onde as exigências são ainda maiores.”
Cintia Buschinelli (SBPSP) conta em um outro ensaio a experiência de uma mulher (ela) que foi infectada Por Covid-19, em “O INIMIGO OCULTO E A AMIGA”. Para ela, “o que sustenta o isolamento é o sentimento de pertencimento e de cuidado, ou seja, a velha e conhecida e muito bem vinda Pulsão de Vida, em maiúsculo e negrito, como lhe cabe”. Sua presença sensível no grupo de e-mail dos colegas do Observatório Psicanalítico – que hoje soma mais de 430 participantes – nos anima a continuar na luta contra a onda destrutiva que se abateu sobre nós. Exemplificamos os diversos comentários ao ensaio de Cintia, com o de Anne Pfluger (SBPdePA): “hoje é o dia nacional da poesia. E teu texto é poesia na veia! Conseguir fazer transformações num momento de dor, não é para qualquer um (uma)!”.
Júlio Gheller (SBPSP), tocado pelo depoimento de Cintia, escreveu um novo ensaio, “DESGRAÇA POUCA É BOBAGEM”: “Não há como negar o sentimento de indignação com o que acontece no Brasil”. Provocou então uma discussão sobre o lugar do analista frente à tragédia e o sentido da adesão de colegas ao discurso governista: “como ainda temos colegas psicanalistas adeptos do que está aí? (…) O que explica tal escolha por parte de alguém – como os referidos psicanalistas – que pôde estudar, ler, se informar, observar e se interessar por questões do sofrimento mental? Algo como a atração inconsciente por um pai da horda, figura dominante e autoritária, suposto salvador da pátria? Ou, o apego ao próprio status de classe dominante, merecedora de todos os privilégios que, desde sempre, lhe foram concedidos?” Leonardo Siqueira (SBPMG) ecoou as questões de Júlio: “Como pessoas que trabalham com palavras e significado, acho que precisamos nos atrever a tentar nomear as coisas. No fundo, acho que entendo que a psicanálise não nos livra de nada, nem do genocídio (com aplausos de seus membros) ou do fascismo. Mas cá entre nós, é possível ser psicanalista assim?”
No ultimo dia do mês, Ney Marinho (SBPRJ) nos presenteou com sua escrita sobre o dia “31 de Março de 1964, O ÚLTIMO DIA DE UMA GERAÇÃO! – in memorian ao Presidente João Goulart (Jango)”, que “realizava um governo democrático, aberto permanentemente ao diálogo”, mas que sofreu um golpe militar com “apoio externo, da burguesia, de boa parte da nossa classe média, receosa da ameaça comunista – fruto da guerra fria, sempre sem ficar claro em que tal ameaça consistia -, talvez de perder seus ‘… podres poderes’ como veio a dizer o poeta”. A história contada por Ney agora nos convoca a pensar no pesadelo atual que vivemos e a agir para que “não se repita jamais a crueldade do arbítrio, da tortura, da censura, da violência contra os trabalhadores – da cidade e do campo – contra as mulheres e crianças de nossas comunidades, a violência do racismo, próprios da ditadura.”
Neste sentido, destacamos que diversas Sociedades psicanalíticas vêm se organizando e expressando sua indignação. A SBPRJ publicou a “Carta aos Brasileiros”, em que afirma: “o desapreço que esta administração demonstra por seu povo, sua saúde e pela comunidade científica pode ser avaliado pelos milhares de mortos que contabilizamos e pelo lugar que ocupamos na estatística internacional na luta contra a pandemia”. Seguiram-se a ela outras cartas, das quais trazemos alguns trechos:
“As novas cepas mostram-se ainda mais violentas com altas taxas de contágio e maior risco de óbito. A pandemia se potencializa por uma política negacionista e tanática aos brasileiros” (SBPdePA).
“Estamos em pleno salto em direção à escuridão e incertezas do próximo momento e não podemos nos esquivar das nossas responsabilidades, como psicanalistas e como uma Sociedade de Psicanálise” (SBPRP).
“E nós brasileiros, o que temos feito? Quantos de nós cobraram dos políticos que ajudamos a eleger as medidas urgentes que precisam ser tomadas? Que medidas eles tomaram?” (SPRJ).
Por fim, destacamos o vigor, a angústia e o posicionamento crítico diante do quadro da trágica crise política, humanitária e sanitária que enfrentamos traduzido na Carta Aberta da FEBRAPSI, a que todos estamos filiados e que pode ser encontrada em: https://www.facebook.com/252098498261587/posts/1933746890096731/?d=n
Equipe Curadoria
Beth Mori, Daniela Boianovsky, Ludmila Frateschi e Rafaela Degani.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).
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