31 de março de 1964, o último dia de uma geração

Observatório Psicanalítico – OP 235/2021

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo. 

 

31 de março de 1964, o último dia de uma geração

 

Ney Marinho (SBPRJ)

 

Ao Presidente João Goulart (Jango), in memoriam, e a todos os que não puderam voltar ou assistir à redemocratização e estar conosco para defendê-la

 

                     “… Não tenho dúvidas de que a humanidade sobreviverá até mesmo a esta guerra (I Guerra Mundial), mas tenho certeza de que para mim e meus contemporâneos o mundo jamais será novamente um lugar feliz. Ele é demasiado horrendo. E o mais triste de tudo é que se trata exatamente do modo pelo qual deveríamos ter esperado que as pessoas se comportassem, a partir do nosso conhecimento da psicanálise …Minha conclusão secreta sempre foi: desde que só podemos considerar a mais elevada civilização atual como carregada de uma enorme hipocrisia, conclui-se que somos organicamente inadequados a ela. Somos forçados a abdicar e o Grande Desconhecido, Ele ou Alguma Coisa, emboscado atrás do Destino, algum dia repetirá esta experiência com uma outra raça.” (Carta de Freud, in Freud/Lou Andreas Salomé – Correspondência Completa, 1975 [1914])

 

Lembro-me bem do dia, tempo fechado, chuvoso e desagradável. Após as inúmeras reuniões do dia anterior, quando o golpe militar já se prenunciava, acordei para ir à concentração marcada da liderança do movimento estudantil. Era na então Faculdade de Filosofia, ao lado da Maison de France, atualmente Consulado da Itália e onde funciona o Instituto Italiano di Cultura. Havia outras concentrações estudantis: na UNE (União Nacional dos Estudantes – praia de Botafogo) e no CACO (Centro Acadêmico Candido de Oliveira, da Faculdade Nacional de Direito, no Campo de Santana, próximo ao Ministério da Guerra, já tomado pelos golpistas e, não sabíamos, chefiados pelo General Castelo Branco!). 

 

As notícias eram imprecisas, mas tínhamos conhecimento de que o General Mourão Filho – o mesmo que, quando capitão, integralista que era, participou da divulgação do famoso Plano Cohen, um documento falsificado que descrevia um golpe comunista iminente, em 1937, o qual serviu de pretexto para o fechamento do Congresso e o início da Ditadura Vargas – havia se rebelado em Juiz de Fora contra o governo João Goulart. Minas era então governada pelo banqueiro udenista Magalhães Pinto, pretenso candidato a Presidente. 

 

As informações eram vagas, e pouco a pouco fomos recebendo notícias da UNE, naquele momento sob ataque, que devíamos nos concentrar no CACO, pois, os militares que pensávamos fiéis, na Cinelândia, já obedeciam ordens dos golpistas. Militares que, a rigor, eram jovens, ignorantes do que se passava, aos quais tínhamos distribuído panfletos e palavras de ordem de congratulações e apoio, recebidas com alegria, ao legítimo governo João Goulart – impossível deixar de lembrar, um dos mais democráticos que tivemos, aberto permanentemente ao diálogo. 

 

A orientação agora era outra: recuar, dirigir-nos a pé para o CACO, concentração mais segura, talvez por ser perto do Ministério da Guerra, receber armas e instruções de como defender o governo legítimo. Lá aguardávamos, divididos em grupos de 5 (constituíamos cerca de 1000), sentados, pois a polícia política (DOPS) do governador udenista Carlos Lacerda, vez por outra, passava e metralhava as janelas e paredes da tradicional faculdade. 

 

Assim permanecemos toda a tarde, até recebermos a informação de que João Goulart decidira não resistir, evitar uma guerra civil, ir para o sul e se possível para o Uruguai. Ao mesmo tempo, tal comunicação também nos foi dada pelo capitão que comandava os tanques que guarneciam o Ministério da Guerra – legalista, mais tarde soube ter sido expulso do Exército e se tornado um brilhante crítico literário – Ivan Cavalcanti Proença! A ele os meus tardios agradecimentos. 

 

Com a cobertura de seu tanque na porta do CACO, saímos a pé para alcançar o aterro do Flamengo. Com meus companheiros da liderança universitária do partido – PCB – dirigimo-nos, no carro do querido colega Teixeirinha (filho de Anísio Teixeira, nosso grande educador) para um apartamento aparentemente protegido, para passarmos pelo menos uma noite, antes de mergulhar, alguns, numa semiclandestinidade, outros na clandestinidade (os comunistas não se exilavam, por princípio). No trajeto, vimos a UNE incendiada, vimos nossos sonhos pisoteados, sentimos que estávamos vivendo o último dia de nossa juventude. Daí para frente não seríamos os mesmos, como disse Freud para Lou Andreas Salomé.

                

Os primeiros Atos Institucionais já mostravam a política de extinção do Estado de Direito para passar ao de plena exceção através da cassação de direitos políticos, desde Luiz Carlos Prestes, passando por João Goulart, Leonel Brizola, Paulo Freire (curiosa coincidência com nossos atuais governantes), Josué de Castro e, mais tarde, de brilhantes ministros do STF (Evandro Lins e Silva, Hermes Lima, Victor Nunes Leal), intelectuais (Celso Furtado e Darcy Ribeiro), líderes sindicais e estudantis, e por aí afora, impedindo qualquer oposição. O pusilânime e cúmplice Presidente da Câmara – Raniere Mazzilli – declara a vacância do poder mesmo sabendo estar João Goulart no Brasil. Ouve os protestos enfáticos de … Tancredo Neves: “Canalha, canalha!”. 

 

A história mostrou quem tinha razão. Mais uma vez é a voz de Tancredo, que já discursara no túmulo de Getúlio, pavimentando a união em torno de JK, que denuncia o golpe. Se não conseguiram em 1954, nem em 1955 (na tentativa de impedir a posse de JK) graças à reação do Marechal Lott – um inesquecível militar comprometido com a democracia -, mais duas tentativas no governo JK, além da famigerada junta que tentara impedir a posse de Jango, conseguiram, então, em 1964, com o apoio externo (USA, agora público após liberação dos documentos do Pentágono. À ditadura brasileira se seguiram a argentina, uruguaia, boliviana e … uma das mais cruéis, a chilena de Pinochet, todas com o apoio externo), da burguesia e de boa parte da classe média, receosa da ameaça comunista – fruto da guerra fria, sempre sem ficar claro em que tal ameaça consistia -, talvez de perder seus “… podres poderes” como veio a dizer o poeta. 

 

Sim, nossos sonhos foram pisoteados – mas, por serem imateriais, não morreram… – nosso sofrimento foi indescritível. Alguns se desesperaram no exílio, outros, partiram para a luta armada, muitos, com o correr dos longos 21 anos de ditadura e obscurantismo, se aburguesaram e viraram mortos vivos. Uns poucos persistiram, tiveram algumas vitórias, muitas derrotas e novas vitórias, mas de fato nunca mais foram felizes como antes. 

 

Sabemos que esse atual pesadelo – Bolsonaro, Mourão, o pinochetista Guedes, todo este bizarro e sinistro ministério – vai acabar. Não seremos felizes como antes, mas esperamos que nossas experiências sirvam para que não se repita jamais a crueldade do arbítrio, da tortura, da censura, da violência contra os trabalhadores – da cidade e do campo – contra as mulheres e crianças de nossas comunidades, a violência do racismo, próprios da ditadura. Aprendemos que tudo isto faz parte de um mesmo conjunto que alimenta a desigualdade, a ideia de superior/inferior que só se mantém através da violência do belicismo.    

 

Obrigado equipe de curadoria do Observatório Psicanalítico pelo convite, foi duro, sofrido, mas bom … lembrar que no fundo somos os mesmos, espero que melhorados, menos pretensiosos e arrogantes, podendo ouvir as novas gerações, com menos certezas e mais dúvidas, porém firmes para denunciar a exploração do trabalho pelo capital e reivindicar um mundo fraterno e pacífico, o que nos parece somente ser possível entre iguais. 

 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

 

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