Observatório Psicanalítico – OP 218/2021
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Vidas negras importam VII: na dialética da violência e do direito
Ignácio A. Paim Filho (SBPdePA)
Augusto M. Paim (Sig. Mundo e CEPdePA)
“O direito da comunidade se torna então a expressão das relações desiguais de poder em seu meio, as leis serão feitas por e para os dominantes, e elas concederão poucos direitos aos submetidos” (Freud, 1932).
O ano de 2020 foi fundamental para o movimento negro do Brasil que, depois de uma longa história de lutas em prol da negritude, que remetem ao tempo da escravidão, tem conseguido de forma firme e consistente despertar em uma parcela do povo branco sua responsabilidade com as origens, desenvolvimento e destinos do racismo à brasileira: a branquitude está em pauta. Nesse sentido, o movimento Black Lives Matter (2013), uma iniciativa internacional fundada nos Estados Unidos pelas ativistas Alicia Garza, Patrisse Cullors e Opal Tometi, justamente para combater a supremacia branca e, em especial, a violência policial, adquire contornos próprios em solo brasileiro – criando novas narrativas, deslocando o enredo em direção ao poder despótico do racismo institucional, presente nos representantes da lei.
“Vidas Negras Importam”, enquanto movimento coletivo, toma para si o compromisso de não silenciar os ataques que sofrem os corpos e almas de negros e negras: o racismo que nos habita, com sua fúria indomada, tem que ser denunciado, trabalhado e criar perspectivas de transformações efetivas. Reforçando a importância do coletivo, Freud (1932) ratifica: “Mas, para que se realize essa passagem para o novo direito, uma condição psicológica precisa ser preenchida. É preciso que a união de muitos seja duradoura”. Um novo direito sustentado no laço com um social, que seja produto de uma condição psicológica antirracista, pautada pela inscrição da alteridade no sujeito e na cultura, que venha a contemplar as diferenças na sua horizontalidade.
Este ensaio sobre “Vidas Negras Importam” tem a pretensão de exercitar um pensar sobre a cruel temática – o assassinato daqueles que tem na cor da pele uma sentença de morte – tomando como interlocutora principal, a carta-resposta de Freud a Einstein sobre o porquê da guerra (1932). Essa carta trata da destrutividade humana, tendo como um dos seus fundamentos a relação entre a violência e o direito, em suas origens e desdobramentos no jogo de poder que constitui a organização social. Recordemos que nossa sociedade foi forjada na violência do racismo do europeu, materializada na prática da escravidão dos africanos. Desde então, vemos o enraizamento do racismo que ocorre na constituição da “república democrática brasileira”, onde vigora os direitos que são outorgados pelos brancos, para os brancos, em detrimento dos poucos direitos aos submetidos. Com essa constatação como indicador, vamos tecer uma breve narrativa da guerra da vida cotidiana que se abate sobre o povo negro, onde a violência do racismo sistêmico mostra a sua face diante dos inegáveis direitos da branquitude, em todos os seus vértices: ordem para o negro, progresso para o branco.
Nosso escrito é produto de uma parceria – pai/filho – que desenvolve-se em meio ao processo de nos havermos com a nossa negritude, o tornar-se negro. Neste, fomos tocados, com maior sensibilidade, pelas cenas de extermínio de crianças e jovens – possível identificação: enquanto pai, com pais que tem que enterrar seus filhos, tendo como enquadre a letalidade da hierarquização de raças, e, enquanto filho, com a ameaça constante de ser o próximo, num ciclo transgeracional interminável. Esse texto tem a aspiração de ser uma convocatória, para o mundo psicanalítico e suas instituições, para que sigam, depois de sua histórica inércia, ocupando-se dessa tragédia coletiva secular: o genocídio dos jovens afrodescendentes – o trabalho da morte – subjugar a vida ao poder da morte (A. Mbembe, 2018), em termos biológicos e psíquicos. Nesse sentido, vamos tomar como ponto de partida o terror do “mata-se uma criança” – crianças negras. Pais assujeitados ao poder tanático das leis elaboradas por e para os dominantes, o povo branco, que não obstante conhecê-las, vive sob a insígnia da desmentida: “sei que todos devem ser iguais perante a lei, mas a população negra pode ser subjugada, afinal o subalterno deve reconhecer o seu lugar, que é o de viver à margem dos ideais da cultura brancocêntrica”. Lugar que remete à alta probabilidade de ser descartado.
A manchete é essa: “Meninas de 4 e 7 anos são mortas em tiroteio em Duque de Caxias” (G1, Dez, 2020). Mas poderia ser: Ana Carolina Neves (Jan. de 2020), João Vitor Moreira (Jan. 2020), João Pedro Matos Pinto (Maio, 2020); Italo Augusto Amorim (Jun., 2020)… Mais uma notícia trágica no dia a dia da população negra brasileira e, aparentemente, sem solução. De um lado, temos a polícia militar afirmando não ter efetuado disparos e apenas estar apenas cumprindo sua patrulha diária; de outro, os vizinhos, a avó e a prima das meninas dizem ter ouvido tiros – mais de 10 – saindo de dentro da viatura. Diante desse acontecer, delimita-se o cenário: apuração balística, testemunhas, laudo da necropsia e por aí vamos na realidade mortífera que cerca nossa sociedade, com seu incansável racismo estrutural. Esse roteiro, com sua possível pretensão de justiça, provavelmente não cumprirá a sua função de responsabilizar e penalizar os assassinos. Afinal, é normal que crianças negras morram, diante da guerra cotidiana que está instalada nos territórios que habitam, quer seja pela ação direta do Estado ou por sua abstenção. O que a matéria não aponta, mas revela em suas entrelinhas, é a entrada dessas crianças na estatística dos assassinatos em série do povo negro. Em nosso país, os negros, são 75,7% dos casos de homicídio, aumento de mais de 11% entre 2008 e 2018.
Nesse sentido, as palavras de Emicida, são reveladoras: “80 tiros te lembram que existe pele alva e pele alvo” (Ismália, 2019). Até quando?
Emily, a mais nova, estava para fazer 5 anos, com a festa planejada, seria a primeira dela. Acabou por ser enterrada com o vestido que usaria no dia. A mais velha, Rebecca, teve fígado e coração perfurados pelas balas. Balas que violaram seu corpo de menina, palco de horrores – o racismo – com sua insana destrutividade. Condição condizente com a ideia de necropoder de A. Mbembe, que “embaralha as fronteiras entre resistência e suicidio, sacrifício e redenção, mártir e liberdade” (2017). Frágil simbolismo de outra perfuração, que remete ao vazio de nossas origens e que reverbera naqueles que se dispõem implicar-se com mais essa tragédia da vida dos afrodescendentes. Contexto marcado pela presença intensa, nas palavras de Freud (1932), de um poder desigual entre homens e mulheres, pais e filhos e, ampliamos, entre negros e brancos. Por esse caminho Freud adverte, que o direito era em sua nascente violência bruta, e que segue, paradoxalmente, até nossos dias, “não podendo prescindir do apoio da violência”. Escutemos com atenção: sem o apoio da violência não existe direito. Portanto, temos que tomar a violência, enquanto forma de apresentação da pulsão de morte, em seu vínculo com Eros, para transformá-la em pressão que cause inquietação, e assim, desnaturalize o direito racista do Estado em decretar, dentre outros abusos, quem deve morrer. Caminho para a instauração do direito à vida, saúde e educação para nossas crianças negras: Vidas Negras Importam.
Fazendo um pequeno parênteses em nossa narrativa, registramos, como mais um exemplo, da regressão do direito a violência, o assassinato de João Alberto Freitas (Nov. 2020) – morto a socos por seguranças de um supermercado, em Porto Alegre. Provavelmente tenha histórias de transgressões, talvez tivesse que ser punido. Entretanto, o racismo estrutural imperou e fez desses seguranças os juízes e carrascos de João Alberto: materialização da inexistência do direito para negros, para eles somente a violência. Cena lesiva, que valida as palavras de Pedro, personagem do O Avesso da Pele (J. Tenório, 2020): “No sul do país, um corpo negro será sempre um corpo em risco”.
A história do assassinato dessas meninas e meninos negros é precedida de centenas de outros infanticídios, que ocorrem de modo mais intenso nos espaços geográficos ocupados, em sua maioria, pela população negra. Nesses, os “guardiões da lei” sentem-se autorizados a exercitar uma violência indiscriminada, em nome da manutenção de uma ordem civilizatória instaurada pelos preceitos racistas que estruturam nossas instituições: “os dominantes elevando-se acima das restrições válidas para todos, portanto retrocedendo do domínio do direito para o domínio da violência” (Freud, 1932). Legitimando a máxima que propõe: negro bom é negro morto. Frase que tem por meta naturalizar o extermínio, muitas vezes, sobre a falácia da bala perdida – a via regressiva do direito à violência é restaurada. Perdida para quem ou em direção a quem?
Retomando nossa matéria de abertura, que contribuição esse paradigma analítico-histórico poderia ter em nossa chamada pós-modernidade? Pensamos que é baseado nessa realidade de estruturação do racismo, externo e interno, que se encontra a justificativa para as barbáries que envolvem as questões raciais brasileiras – quem detém o poder, detém a capacidade de manipular a dialética entre a violência e o direito. Quando crianças negras são assassinadas, o impacto que isso gera tende a ser uma tendência a ser fagocitado pelo contexto social que as descolam do seu lugar infantil, com seu intrínseco desamparo. Por essa linha, as palavras do rapper Preto Du são esclarecedoras, quando da brincadeira, na infância, de pedir esmola, em companhia de um amigo negro: “o tratamento comigo era sempre muito caloroso … ‘Que menino lindo! O que está fazendo aqui? Cadê sua mãe? Você tinha que estar brincando’. Com meu amigo negro apenas jogavam umas moedas … ou simplesmente negavam … quase descolei uma adoção” (A branquitude invisível – pessoas brancas e não percepção dos privilégios: Verdade ou Hipocrisia?” (J. H. de A. Miranda, 2017, p. 57).
Emilys, Rebeccas e… ocupam este lugar no imaginário social, um lugar que a branquitude, com seus privilégios e direitos estruturados sob a violência da racialização de negros e negras, estabeleceu: uma infância sem o lúdico da infância. As mortes chocam, mas será que é o suficiente para mexer com as estruturas sociais e balançar o estabelecido? No que depender do povo negro, sim. Vamos seguir usando a força disruptiva, com sua violência simbólica da magia das palavras (Freud, 1904) para pressionar, tensionar, desacomodar e não deixar calar que nossas vidas importam.
O movimento “Vidas Negras Importam” tem como um dos seus objetivos fazer trabalhar e desmontar as bases fundantes do racismo estrutural, com suas implicações no destino da nossa ordem cultural – tudo o que estimula o desenvolvimento cultural também trabalha contra a guerra (Freud, 1932) – em prol de um tempo presente/futuro em que a verdade material da guerra sanguinária do racismo se faça verdade histórica.
Nesse sentido, a recente eleição do senador negro Raphael Warnock pelo estado da Geórgia, território sabidamente com uma cultura racista predominante, bem como, em Porto Alegre, uma das cidades mais racista do Brasil, foi eleita pela primeira vez uma bancada negra para câmara de vereadores – Daiana Santos, Laura Sito, Bruna Rodrigues, Matheus Gomes e Karen Santos – aquisições que respaldam a relevância dos movimentos negros para a mudança do establishment: vitória do direito sobre a violência. Tempo de referendar a importância das vidas negras.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
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