Caminhos de 2020, Esperança 2021

Observatório Psicanalítico – OP 217/2021

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

 

Caminhos de 2020, Esperança 2021

Fernanda Lacerda (SPBsB)

 

A primeira semana do ano foi intensa: mais um ataque à democracia com a invasão do Congresso americano, mais de 200 mil mortos por Covid-19 em nosso país, e muito falatório e pouca clareza acerca da concretização do plano nacional de vacinação. Por outro lado, temos boas notícias também: a vitória histórica de Raphael Warnock no Estado da Geórgia e, por aqui, um alento com, finalmente, a divulgação dos dados (alguns, pelo menos) sobre a eficácia da vacina Coronavac.

 

Assim, começamos 2021: esperança renovada com a passagem de ano, velhas e novas aranhas prontas para devorá-la?

 

Na crônica “A esperança” de Clarice Lispector, Clarice e o filho espreitam uma esperança, o inseto, concreto e verde, que apareceu em sua sala. A esperança parecia burra, parecia que seria esmigalhada por uma aranha. Então, seu filho corre e pega uma vassoura para salvá-la.

 

Clarice, como nos disse, com precisão, Fernanda Speggiorin P. Alarcão (SBPSP), em um ensaio deste Observatório, conversa com nosso submerso. “Mais pousa que vive, é um esqueletinho verde, e tem uma forma tão delicada”. É assim que ela descreve o inseto, mas são palavras que vão muito além e ecoam dentro de nós uma faceta da esperança (sentimento), talvez pouco explorada, mas muito vivida. Uma esperança que requer cuidados? Oscilante?

 

O ano de 2020 foi o ano da espera. Imersos em incertezas, passamos o ano com medo do contágio e, mais ainda, com medo de contaminar quem a gente ama.

 

Até estarmos certos de que viriam outras ondas, aguardamos, desde março, o pico da pandemia, a diminuição na taxa de contágio, a reabertura do comércio e o retorno das escolas. O comércio reabriu e as escolas também, mas a vida não era a mesma, perdemos a segurança. Ficamos, então, na expectativa da única saída, a imunização. Graças à pulsão de vida essa espera é ativa, dinâmica. Buscamos novas experiências, nos reinventamos para continuar trabalhando. Para os menos adeptos à tecnologia, um grande desafio foi tornar os encontros online plenos de vivacidade.

 

Por alguns momentos, ainda confiantes que dentro de poucos meses tudo voltaria ao normal, tivemos tranquilidade e nos acomodamos a esse novo jeito de viver confinados em casa. Uma acomodação que me lembra “A casa de Astérion” de Jorge Luis Borges. O conto é uma paródia do mito do Minotauro. O narrador-personagem nos apresenta o mundo em que vive. Diante da selvageria encontrada fora, o labirinto tornou-se seu abrigo. Apesar da monotonia e da mesmice, ele está adaptado àquela casa tão distinta. Ele se distrai, entretém-se de forma lúdica, imagina-se brincando com outro (seu duplo?). Conforma-se com a solidão, sonhando em não estar só. Toda essa adaptação é sustentada pela certeza da vinda do seu redentor. É só nas últimas linhas desse breve conto que se evidencia que o narrador-personagem é o Minotauro.

 

Ele não lamenta seu destino e não faz menção a qualquer sentimento melancólico. Porém, nós leitores, sentimos sua melancolia. A ficção valida nossos sentimentos de que, mesmo adaptados, ainda que por proteção e com a certeza da redenção, privação da liberdade e solidão nos esmorece.

 

Ao longo desses dez meses, buscamos, cada um do seu jeito, maneiras de estar com quem amamos. Tenho certeza de que o nosso maior desafio foi nos mantermos em segurança e com nossos corações aquecidos. Lembro-me de minha mãe me contar, ainda no inicio da quarentena, que tinha sonhado um sonho, daqueles que se confundem com a realidade, em que ela abraçava e beijava meus filhos.

 

Pulsão de vida em ação, tentávamos novos horizontes: encontros virtuais ou presenciais calculados, com quarentena ou testagem prévias, máscaras e distanciamento social. 

 

Mas, tivemos também, em dias de mais carência ou mais ousadia, afetuosos encontros sem muito planejar. Afinal, são dez meses.Também passamos, uns mais, outros menos, conforme fantasias e recursos psíquicos próprios, por muitos momentos de angústia e aflição, condizentes com as milhares de mortes e tamanha perversidade por parte de nossos governantes.

 

Mais uma vez é Borges que me vem à cabeça com seu fascínio por labirintos. A privação da liberdade, as incertezas em relação ao contágio ou em relação à evolução da doença e, além disso, a realidade que nós brasileiros vivemos em função do nosso total desgoverno, tudo isso remete à experiência do labirinto.

 

No conto “Os dois reis e os dois labirintos”, o rei de uma das ilhas da Babilônia recebe a visita de um rei árabe e o solta em um labirinto gigantesco e desconcertante que ele mesmo mandara construir. O rei árabe perambulou ofendido e confuso até o cair da tarde, quando implorou por socorro. Tempos depois, esse rei árabe sequestra o rei da Babilônia e lhe diz que, agora, é ele quem vai lhe mostrar o seu labirinto, que é bem diferente daquele outro, pois não tem galerias, nem corredores, nem portas e nem paredes. Em seguida, o abandona no deserto, onde morreu de fome e de sede.

 

São experiências em que, pensando metaforicamente, a pulsão de morte triunfa. O ódio vence. O vazio de um mundo sem horizontes também põe fim a vida.  

 

O ano de 2020 foi extremamente desafiador para nossa saúde mental. Com tantos bloqueios e interdições no circuito do afeto, inúmeras vezes, nos pegamos calculando e recalculando como fazer para estar com quem amamos sem colocarmos todos em risco. E justo nós que ficávamos tão impacientes e irritados quando escutávamos o “recalculando” do GPS do carro. Medo e cuidado juntos resultaram em infinitos recálculos, um tanto neuróticos, mas em busca da vida.

 

Termino com os singelos e certeiros versos de Carlos Drummond de Andrade:

 

“Para ganhar um Ano Novo

que mereça este nome,

você, meu caro, tem de merecê-lo,

tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente.

É dentro de você que o Ano Novo

cochila e espera desde sempre”.

 

Que 2021 seja realmente novo! Esperança imóvel vira alimento de aranha. Prefiro o labirinto ao deserto. Enquanto a tão sonhada saída, a imunização, não está ao nosso alcance, peregrinaremos procurando caminhos. Lembrando que o fio de Ariadne é o amor. 

 

Não posso deixar de mencionar meus sentimentos a todas as vítimas dessa pandemia.

 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

 

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Os ensaios do OP são postados no site da Febrapsi. Clique no link abaixo:

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