Vidas negras importam – I

Observatório Psicanalítico – 170/2020

 

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.

 

Vidas negras importam – I 

Ignácio A. Paim Filho (SBPdePA)

 

“Estamos vivendo um período especialmente marcante. Descobrimos, para o nosso espanto, que o progresso aliou-se à barbárie” (Freud, Londres, março de 1938).

 

Com o slogan “Vidas Negras Importam” como carro chefe, espalharam-se pelo mundo ondas de protestos em decorrência do assassinato do afro-americano George Floyd, em 25/05/2020, pelo policial branco Derek Chauvin. Mais um assassinato efetuado pelo estado, em uma lista interminável que remonta aos tempos da escravidão. O racismo sendo agente da destruição do povo negro, em especial, o racismo institucional. Reativando o ominoso interrogante: Vidas Negras Importam?

 

Esse cenário, que comoveu os mais diferentes continentes, retrata, parcialmente, a realidade vivida em nosso país, onde as estatísticas nos dizem que 75% dos mortos pela polícia são negros. Nos EUA esse número é bem menor: 24%. Fenômeno estranho, já que lá a histórica segregação racial é explícita. É a explicitação que dá margem a trabalhar por transformações? A dor – sentida e vivida – possibilita ao negro formas de instrumentalizar defesas contra um agressor visível. Abastecido com esse saber libertador, ele então está apto a lutar para legitimar seus direitos. Eleger um presidente negro foi uma das resultantes, dizendo ao mundo que estão apenas no começo. O horror/temor do poder do negro, via palavra, se faz mais contundente: “É que as palavras são o mediador mais importante de influência que um homem pode exercer sobre outro […]” (Freud, 1905).

 

No Brasil, nossa lista de assassinatos praticados pelo Estado segue aumentando em progressão geométrica diariamente: período marcante onde as Vidas Negras Não Importam.

 

Contexto aterrador, que nos compele a nos juntarmos a múltiplas vozes que bradam pelo direito, acima de tudo, da coletividade negra de seguir viva, ratificando em palavras e ações (e não em omissões) que suas vidas, sim, importam. Nesse sentido, não podemos e não devemos seguir envoltos na ideia delirante que visa perverter o que ocorre no Brasil desde a chegada dos portugueses: isso tem uma denominação –  RACISMO À BRASILEIRA – inimigo invisível? Crime que possui uma história de mais de 500 anos, e é engendrado pelo homem branco europeu, que fez da cor da pele do africano o desígnio de seu destino de inferioridade, a fim de justificar o injustificável: sua escravidão,  com requintes de crueldade.

 

Crueldade  reeditada de forma persistente entre as “sutilezas” do racismo da vida cotidiana – os paradigmas conceituais do branco – até à tragédia das mortes covardemente executadas sob a insígnia da lei, em países ditos democráticos: descobrimos, para o nosso espanto, que o progresso aliou-se à barbárie. Tempo de retorno à questão do poder do negro, agora, em nossas terras? Precisamos soltar a nossa voz das mordaças, da ignorância, denunciando e fazendo trabalhar, de forma contínua, o silêncio mortífero da servidão involuntária, que o racismo renegado visa impor.

  

Sendo assim, minha pretensão é assinalar alguns elementos sobre o racismo que estrutura nossa ordem cultural e seus desdobramentos, em particular, nossas instituições.  Essas que, na verdade, deveriam ser as guardiãs de uma justiça igualitária comprometida na manutenção e validação da assertiva de que as Vidas Negras, Sim, Importam!

 

Em consonância com essa proposição, rememoro a concepção freudiana sobre O mito científico das origens da nossa organização social (1921). Esse tem por princípio que a transição da horda selvagem para a ordem civilizatória, se faz com um ato: o assassinato do pai. Narra o nosso mito fundador que no tempo primordial o bicho homem vivia em bandos, governados por um macho violento, despótico, tirânico, que encarnava o poder absoluto e remetia ao exílio os filhos que ameaçavam seu pátrio poder. Entretanto, surge o dia em que esses filhos retornam do exílio e matam o pai. Diante desse momentoso ato, estabelecem:  ninguém irá ocupar o lugar do pai primevo – o pai morto tornou-se mais forte do que fora vivo (Freud, 1913) –  uma renúncia que irá fundar o pacto civilizatório. A compaixão se faz agente de preceitos éticos. Com esse acontecer, delimitador das demandas narcísicas do individual em prol da coletividade, opera-se o laço com o Estado de Direito e com as leis, às quais devemos estar todos submetidos. 

 

Evocar pontualmente essa hipotética antropologia psicanalítica tem por meta exercitar uma reflexão sobre este longo e obscuro período em que vivemos. Período que perigosamente vem namorando com a lógica fascista que vigora na horda selvagem, falência da barreira da compaixão: Brasil para os brasileiros brancos, com suas crenças eurocentristas e colonizadoras. Afinal, é essa a vida que importa?   

 

Quando nos deparamos, por exemplo, com policiais que se utilizam da força de que estão investidos como representantes da lei – do Estado – para efetuarem descargas letais, calcadas em postulados racistas, o fazem em nome de perpetuar o poder do branco, do qual são emissários. Nesse território, temos encenada a narrativa que está posta na horda selvagem: filhos negros que denunciam sua insubordinação ao pátrio poder do branco, que se recusam em seguir exilados de seus direitos como cidadãos, que lutam pelos próprios desejos, sendo brutalmente assassinados. 

 

Mas seguramente não calados, não paralisados e não submetidos. 

Nós estamos apenas no começo, como diz a canção Rodésia, de Tim Maia: 

 

… Pegue o sangue azul

Mande para as cucuias

Só assim vão ver

Que o preto é bom

Mas também é valente

Meu irmão de cor

Chega de pudor

Pois assim não é possível

Toma o que é seu

Pois foi quem te deu

Bela natureza triste

Viva livre em paz

Pois sua terra é esta… 

        

Vidas  Negras Importam – importam porque fazem e sustentam a igualdade nas diferenças. 

 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).

 

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