Vidas negras importam – II

Observatório Psicanalítico – 171/2020

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.

Vidas negras importam – II

 

Lina Schlachter Castro (SPFor)

 

Com toda a minha “branquitude”, cresci orgulhosa por ter sido criada em um país de miscigenação. Meu estado, Ceará, foi o primeiro a abolir a escravatura, pois, diziam-me, os senhores eram muito próximos afetivamente de seus escravizados e, portanto, a escravidão perdeu o sentido em um terreno tão cordial. 

 

Comecei a questionar esse meu orgulho apenas após trabalhar em uma clínica social na Filadélfia, EUA, atendendo principalmente pacientes negros. Em uma sessão, uma paciente afirmou: “eu escutei falar que no Brasil não é assim, que vocês convivem muito bem com os negros″. Sorri, sem saber o que pensar. Após escutar tantos relatos das inúmeras dificuldades de pessoas negras em um país que não era o meu, perguntei-me se, no meu país, em que eu imaginava haver uma democracia racial, a afirmação da paciente era verdadeira. Pensei na ausência de pessoas negras ao meu redor: no prédio em que eu morava, na escola e na universidade (pública) que eu frequentava e em tantos outros espaços que eu ocupava. Será que éramos tão “juntos e misturados” assim? 

 

Não surpreendentemente, ao buscar dados, deparei-me com o profundo abismo que separa negros e brancos. A maioria das mortes violentas, os menores salários e a maior taxa de analfabetismo estão entre os negros.  A harmonia entre raças, portanto, é um mito social. Pensei em revisitar a nossa história, sem a qual não podemos pensar nossas condições extremamente desiguais de forma transformadora. Aos poucos, percebi que nossa história é repleta de omissões que, claro, servem a alguém. 

 

Para citar um exemplo, Rui Barbosa, ministro da fazenda entre 1889 e 1891, emitiu uma ordem, que foi atendida, de queimar todos os arquivos referentes à escravidão. Entre outros efeitos, ao não deixar registros sobre a escravidão, Rui Barbosa retirou a oportunidade que poderíamos ter, enquanto sociedade, de reconhecer a carga violenta que o nosso país carrega, inviabilizando críticas, confrontos e, o mais importante, reparações. 

 

Essa recusa de reconhecer crimes cometidos contra os negros acontece desde os tempos dos senhores feudais, quando, segundo o sociólogo Florestan Fernandes, houve uma tendência a negar a existência de preconceitos, os quais legitimavam a escravidão, provavelmente por causa dos valores cristãos. Ronald Britton, estendendo essa dificuldade para outras nações, declara que “racista é provavelmente uma das palavras mais condenatórias do mundo ocidental”. 

 

Além das forças externas que geram e mantém o racismo, havemos de pensar que sempre há uma pessoa que o perpetua e dá uma vida individual a ele. Levando essa ideia em consideração, o psicanalista africano M. Fakhry Davids propõe que há uma organização racista, principalmente inconsciente, em todos nós. Há uma defesa que dificulta o acesso ao nosso racismo interno. Para ele, essa organização é paranóica e envolve uma construção nós-eles que abrange o self e “outro racial”. Saliento que, ao mesmo tempo que pode ser patológica, essa organização pertence ao desenvolvimento normal. Uma possível manifestação do racismo interno é a inércia e a paralisia psíquica ao lidar com comportamentos raciais abusivos em outros. 

 

Até os dias atuais, verificamos essa tendência do brasileiro de não se identificar como racista, o que o exime tanto de reconhecer que é afetado pela cultura de discriminação em que vive quanto de assumir sua responsabilidade na atual configuração da sociedade. Há uma desigualdade racial em nosso país que é estruturante de nossas relações. Com isso, deixamos de ver o racismo como um sistema complexo e interconectado, mantendo o status quo e perpetuando o racismo.

 

Para finalizar, em uma semana de manifestações após o assassinato brutal de George Floyd, sugiro que, antes de nos declararmos como antirracistas em nossas redes sociais, pensemos em nosso silêncio diante dos inúmeros crimes dirigidos a brasileiros negros. Buscando um caso recente, saliento Miguel, uma criança negra recifense filho de uma empregada doméstica. A patroa autorizar a criança a entrar desacompanhada em um elevador de um prédio estranho é mais um exemplo de nosso racismo velado e de nossa herança autoritária, em que a vida do negro e do pobre pouco importa. Então, ficam as perguntas: o que estamos fazendo para reparar os atos brutais que nossa sociedade comete contra o negro diariamente? Como temos ajudado a aumentar a participação social de negros?  Que iniciativas temos sugerido para transformar a realidade do negro hoje? Já paramos para pensar quantos negros temos como membros em nossas sociedades psicanalíticas? E pacientes negros, quantos temos?

 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).

 

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