Observatório Psicanalítico – OP 234/2021
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
Um homem pra chamar de seu
Eliane de Andrade (SBPMG)
Pandemia, restrições de contato. Casas tornam-se prisões.
O aumento de violência contra mulheres e crianças neste cenário nos traz preocupações, pois, às vezes, até podemos testemunhar situações na vizinhança, que escutamos mais, agora.
Fazendo as tarefas da casa, por volta do Natal de 2020, ouço na TV (que vejo ao passar roupa, o que adoro fazer!) o aumento estarrecedor dos casos de feminicídio.
Possivelmente, poderíamos tentar estudar tal assunto sob vários ângulos e todos levariam à fragilidade da mulher ao longo dos séculos no imaginário mundial.
Em seguida, em outra tarefa doméstica, eu ouvia no rádio a música “Mesmo que seja eu”, de Erasmo Carlos, na voz de Marina Lima. Na canção, a apologia à fragilidade da mulher e também à necessidade do homem para “completá-la” são embaladas em uma toada boa de ouvir, se não se prestar atenção à letra.
Se amar é uma necessidade, escolher também o é. Freud (1905/1972) poderia ter acrescentado isto à lista do “ser adulto”.
Sim, nem todas podem escolher o parceiro. Também, ninguém “é” algo, “de repente”. Todo mundo mostra sua cara, como se diz por aí, em várias atitudes na vida. Das pequenas às grandes coisas do cotidiano, alguém que é capaz de vitimar outro ser humano mais frágil mostra isso em vários momentos.
Teríamos de entrar em toda a especulação sobre vínculos e relacionamentos amorosos, mas eu gostaria de destacar a reflexão sobre a criação cultural da “necessidade” de a mulher “ter” um homem.
Confessemos que até entre nós, psicanalistas, as mulheres solteiras – em toda a acepção que a inexistência de um parceiro traga – são julgadas incompetentes! A mulher “tem de ter” um homem pra chamar de seu.
E, desta forma, essa ideologia gera uma normatização dos acasalamentos, em todos os estratos sociais. Normatização que funciona como imposição, como único caminho valoroso a seguir. Mesmo agora, ainda se espera pouco senso crítico das mulheres, o que, certamente, contribui para sua sujeição a relacionamentos que chamarei de “alienados”.
Simone de Beauvoir (1949/2020) afirma, ironizando, ao citar o corolário universal da criação da mulher: “pegar um marido é uma arte; retê-lo é um ofício”… e há quem siga esta proposição até hoje!
Boa mesmo foi a resposta da Marina Lima, ao cantar a canção do Erasmo Carlos:
“Sei que você fez os seus castelos
E sonhou ser salva do dragão
Desilusão, meu bem
Quando acordou, estava sem ninguém
Sozinha no silêncio do seu quarto
Procura a espada do seu salvador
Que no sonho se desespera
Jamais vai poder livrar você da fera
Da solidão
Com a força do meu canto
Esquento o seu quarto pra secar seu pranto
Aumenta o rádio
Me dê a mão
Filosofia e poesia
É o que dizia minha vó
Antes mal-acompanhada do que só
Você precisa de um homem
Pra chamar de seu
Mesmo que esse homem seja eu
Um homem pra chamar de seu
Mesmo que seja eu”
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