Sobre a intimidade

Observatório Psicanalítico 14/2017

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.

 

Sobre a intimidade

Claudio Eizirik

 

Vivemos um período turbulento, em que a violência, a corrupção, o fanatismo, a irracionalidade e a dificuldade de ouvir o próximo se tornam um desafio cotidiano. Neste mês de julho, psicanalistas de todo o mundo se reunirão em Buenos Aires, no Congresso da IPA, cujo tema central é a intimidade. Pensar a intimidade, que é uma procura constante dos seres humanos, e cuja evitação pode estar na base de tantas formas de manifestações patológicas individuais e grupais, é uma oportuna resposta psicanalítica aos desafios de nossos dias.

Intimidade (do latim, intimus, dentro, experiência interior, relação consigo mesmo e com o/os outro/s) tem uma relação natural com o vínculo, elemento central do ciclo vital e da relação analítica.

Desde o início da vida, a intimidade desempenha um papel essencial nas relações humanas, começando pelo longo período em que a mãe carrega o bebê dentro de si e os primeiros anos de vida, detalhadamente estudados por Melanie Klein e Winnicott.

Erikson (1980) descreve o conflito entre intimidade e isolamento como característico da idade adulta. Uma vez estabelecida a própria identidade, tarefa da adolescência, é possível formar vínculos íntimos e recíprocos e aceitar os sacrifícios e compromissos que tais relações exigem. O amor sexual é sem dúvida uma das principais coisas da vida, e a união da satisfação mental e física no gozo do amor constitui um de seus pontos culminantes. Aparte alguns excêntricos fanáticos, todos sabem disso e conduzem a vida dessa maneira: somente a ciência é refinada demais para admiti-lo, afirma Freud ( 1915).

Mas como fica a intimidade em tempos de modernidade líquida? Observando a realidade em que vivemos, parece haver uma fuga fóbica dos vínculos de intimidade, sob a aparência de uma enorme e global intimidade, como acontece nas redes sociais, nos sites de relacionamento, no Tinder e coisas parecidas. O que penso, tanto a esse respeito como em relação a outros temas, é que nem uma visão catastrófica, nem uma aceitação frenética da suposta liberdade de comunicação são úteis. Há situações em que a comunicação virtual funciona como um objeto ou fenômeno transicional para que um jovem chegue a um vínculo de intimidade com outra pessoa. E há situações em que, na verdade, se apaga toda relação humana pessoal e observamos aqueles que vivem, como diria Freud, in absentia ou in effigie, mas agora com uma roupagem virtual. De todo modo, esta é a linguagem contemporânea e duvido que haja alguma análise em que certas comunicações não sejam feitas mediante imagens, ou sons, ou em movimento, com esses pequenos aparelhos dos quais ninguém mais consegue prescindir.

Na velhice, o vínculo consigo mesmo adquire particular importância. Um aspecto crucial da velhice é o tempo que passa. Danielle Quinodoz (2011) descreve os segundos de eternidade, momentos intensos em que a pessoa sente que existe, o tempo cronológico fica como que suspenso e a vida adquire plena relevância. O choque da beleza, do amor, de certos silêncios, de grandes dores, de escolhas determinantes, a tomada de consciência ou o insight numa análise são exemplos desses segundos de eternidade.

Um vínculo especial nesse período é com os netos, com os quais cada um revive seus momentos de eternidade no presente e experimenta a emoção única de sentir que sua vida vai continuar depois de sua morte pessoal .

A relação analítica nos oferece o cenário para compartilhar com nossos pacientes a narrativa de suas vidas, de seus sofrimentos psíquicos e a história de seus vínculos de intimidade, de agressividade e de suas inevitáveis solidões. Entre as muitas contribuições para a compreensão do que ocorre na relação analítica, devemos a Racker e aos Baranger (1961-2) as noções-chave de contratransferência e de campo analítico, que propiciaram aos analistas atuais um trabalho mais próximo com a emoção compartilhada em cada sessão e a possibilidade de trabalhar com material analítico mais profundo.

Chasseguet-Smirgel (1988) considera que, na maioria dos casos, os analistas levam ao seu trabalho uma mescla equilibrada de traços femininos e masculinos, fruto de suas próprias identificações maternas e paternas. Descreve a “disposição à maternidade” , a capacidade de esperar e ver desenvolver-se uma relação, num lento e paciente trabalho cotidiano, que lembra a gravidez.

Dois autores que representam, a meu ver, uma nova fronteira na prática da psicanálise são Ogden e Ferro. Em seus trabalhos, podemos acompanhar os movimentos da mente do analista, que utiliza todos os seus recursos oníricos e de memória para construir com seu paciente uma rede de sonhos nas sucessivas sessões que podem dar significado presente e passado a sua dificuldade de sonhar e de estabelecer um vínculo de intimidade.

Há que se buscar manter presente a disposição à maternidade, ou o segundo olhar, ou a calma necessária para encontrar a interpretação, ou a pergunta, ou o silêncio que nos permitam viver momentos de intimidade na relação analítica.

 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).

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