Observatório Psicanalítico – 145/2020
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.
Por que carnaval?
Camila Brasiliano, Ludmila Frateschi e Márcio de Assis Roque (SBPSP)
“Se a disposição para a guerra é uma decorrência do instinto de destruição, então será natural recorrer, contra ela, ao antagonista desse instinto, a Eros. Tudo que produz laços emocionais entre as pessoas tem efeitos contrários à guerra.” (1932, Freud, p.430)
Freud escreve em 1932 “Por que a guerra?”, sua carta resposta a pergunta enviada por Einstein, pouco antes da ascensão do Terceiro Reich. Nela, debate a reincidência das guerras pelo mundo e também o que poderia impedi-las. Freud diz ali que, enquanto houver grupos oprimidos, subjugados, haverá necessidade de guerrear. Salienta a dualidade pulsional entre Eros e Tânatos: forças que tendem à conservação e à união em oposição a movimentos de destruição e desligamento. Deixa claro que as pulsões destrutivas dos indivíduos jamais serão extintas. De acordo com a teoria freudiana, é possível transfigurar ou brincar (como num sonho) com as pulsões destrutivas, elaborá-las, mas não apagá-las. A cultura, ofertando elementos para isso, trabalharia contra a guerra.
Vivemos no Brasil um momento de quase inenarrável (e, portanto, traumática) tensão social.
Ainda assim, é carnaval: uma tradição constituída e compartilhada coletivamente (composição do imaginário brasileiro), na qual o brincar, dançar e ocupar as ruas são a base da celebração. Ora, o que é o carnaval se não uma prática cultural que remonta anos, uma festa popular em que se celebra a música e a fantasia e na qual Eros é chamado a se expandir em sua força máxima? “Meu nego, deixa eu te contar a história que a história não conta”, diz o samba-enredo campeão da Mangueira no ano passado. No carnaval, experencia-se histórias individuais e coletivas que não estão nos livros, entrelaçadas aos passos de um frevo ou uma marchinha pelas ladeiras do país. No carnaval, ocupa-se a rua, e de alguma maneira força-se o exercício de compartilha-la, entre foliões e não foliões, entre pessoas de grupos e de segmentos sociais diversos. O carnaval obriga a pensar como reorganizar a cidade, seus usos e suas forças, para que a festa possa acontecer harmonicamente. E, para produzir o carnaval, muitos grupos se organizam, não apenas as massas reunidas nos dias de grandes blocos ou trios, mas pequenos grupos. Os blocos e escolas ensaiam desde o meio do ano anterior, é ensaio de bateria para cá, de harmonia para lá, conversa com vizinhanças, escolha de repertório, produção de estandartes, letras, fantasias. Trata-se de pessoas trabalhando juntas em prol de um projeto comum, reforçando vínculo afetivos e de identificação na formação desses coletivos. São grupos potentes por oferecer resistência ao isolamento destrutivo da tensão social, por fazerem laços eróticos, de vida.
Ato, assim, político por natureza (porque torna as pessoas participantes e atuantes nas criações culturais de sua cidade), o carnaval tem sempre seu lado mais politizado: ele abre espaço para o chiste, para o riso, para a fantasia como forma de tratar das tensões, tornando-as possíveis de serem pensadas e conversadas, e também para blocos e movimentos afirmativos/religiosos (principalmente os de matrizes africanas) em que a denúncia de opressões e a celebração de elementos mitológicos são o princípio dos festejos. Serve também de holofote para aquilo que ficou marcado na memória coletiva, mas que rapidamente se tornaria o fato “que já passou”, muitas vezes sem processamento. Laranjas, goiabeiras, escavadeiras, torturados, censurados, domésticas que vão (ou não vão) à Disney tornam-se roupas brilhantes e purpurinadas nas ruas das cidades. Inúmeras marchinhas satirizam os acontecimentos recentes e marcam posição quanto aos governos municipais, estaduais e federal. Se considerarmos ainda que a arte também pode ser uma grande antena capaz de captar e traduzir movimentos sociais e políticos de seu tempo, o que podemos depreender de nosso momento imediato e de nosso futuro próximo a partir das letras das músicas das escolas de samba do Rio de Janeiro? Na avenida não faltarão refrões como os da Portela “Nossa aldeia é sem partido ou facção / não tem bispo nem se curva a Capitão”, da Mocidade: “Brasil / enfrente o mal que te consome / que os filhos do planeta fome / não percam a esperança em seu cantar”, e ainda o da Mangueira “Favela, pega a visão/ Não tem futuro sem partilha/ Nem messias de arma na mão…”.
Extravasa-se, mas também resiste-se, não apenas aos acontecimentos em si, mas especialmente à violência subjetiva vivida coletivamente. Formam-se laços, de amizade, de amor, de respeito, de convivência. Encontra-se alegria, satisfação pulsional e, acima de tudo, brinca-se, sem excluir luta e afirmação política/social. Trata-se da cultura popular mais uma vez sendo um veículo para a expressão de descarga e ligação pulsional, nos trazendo ferramentas para elaborações tanto individuais e coletivas.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).
Foto de Julio César Guimarães (UOL)
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