Dor, forma, beleza

Observatório Psicanalítico – 146/2020

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.

Dor, forma, beleza

Leopold Nosek (SBPSP)

A política tem nos proporcionado perplexidade, horror e desesperança. O desamparo básico é o da destruição dos anseios e dos sonhos acalentados por todos.

Invocamos horror e sonhos e estamos em território dos analistas. Sabemos que precisamos dormir todos os dias para que o abismo do dia a dia encontre trajeto expressivo em nosso espírito. Toleramos menos a ausência do sono que a sede ou a fome. Torturadores sempre souberam disso e se utilizaram desse expediente. Alimentação e abrigo são necessidades de uma planta; acresça-se sexo e estaremos no reino animal; um pouco mais de afeto e estaremos no espaço dos bichos de estimação.

Cultura é o recurso essencial para o viver humano. Cultura é o prosaico que nos orienta o vestir, o comer, o trajeto de amor, os ritos de nascimento, de fertilidade e de morte. Cultura é o sonho cotidiano. Sua ausência nos destrói; é a ruptura social e familiar que gera as mazelas de nossas cidades.

Em 1970, éramos 90 milhões, metade vivendo no campo. Hoje somos mais de 209 milhões, com 16% no campo. Como receber e amparar os novos cidadãos, como fornecer-lhes uma ecologia social e cultural? Some-se a isso a mudança no modo de vida que acompanha a enorme concentração de riquezas necessária à produção, a demanda por crescentes recursos pessoais para o trabalho, a perda do Estado de seu papel de protetor e investidor de recursos e temos a moldura para o esfacelamento dos paradigmas do viver cotidiano.

Trauma pode ser definido como excesso de demanda comunicativa acompanhado de insuficiência de recursos expressivos. Para viver, necessitamos de configurações que nos orientem.

Em seus trabalhos “La Figlia Che Piange”, de 1948, e “O Direito à Literatura”, de 1988, Antonio Candido cita Otto Rank, afirmando que a arte é o sonho da humanidade. Praticamos a arte há 40 milênios, mas temos agricultura há apenas 10.000 anos. O sonho não é premonitório, simplesmente nos avisa que já temos um conhecimento primordial, ainda não apreendido na esfera do discurso. Necessitamos tanto do sonho como da arte para lidar com as transformações do mundo. Porém, há que se diferenciar sonho de devaneio. Da mesma forma, projetos políticos têm que se diferenciar de utopias. O projeto de poder sem enquadramento político será castigado. Será levado sem defesa pelas forças que supostamente combate, tornando-se não mais que a caricatura delas.

Diante do lamentável espetáculo que ora presenciamos, do sonho que desmorona sem deixar restos, precisamos de novas construções. Em que direção vamos nos mover, com quais forças transformadoras contamos? A realidade sempre nos foge. A arte, se por um lado não supre necessidades, é essencial em sua raiz de percepção e figuração do impensável. Nesses termos, é sempre política.

Faz parte dessa pobreza a inépcia de Otelo para viver um amor. Mas seu maior fracasso reside em, como bárbaro ou mouro, encontrar expediente para ascender à aristocracia veneziana e se sustentar em meio às intrigas da corte onde Iagos são a regra. Ele então nada mais pode fazer senão matar seu amor.

O destino do pequeno serial killer em O Vampiro de Dusseldorf, filme do início dos anos de 1930, pode ainda hoje nos surpreender. O personagem, com sua atividade tosca, estimula a repressão, “atrapalha os negócios” e impede o exercício da delinquência organizada. Esta precisa eliminá-lo e, em concorrência com o Estado organizado, captura o “estranho”. Há a antológica cena da assembleia de bandidos que, num arremedo de legalidade, usurpa a bandeira da ética e conduz o julgamento do crime não lucrativo praticado pelo “vampiro”. O filme antevê o triunfo do nazismo.

A arte dá trajetos para os pensamentos e é antídoto para o horror do inominado. Somos herdeiros de Hiroshima, holocaustos, final de utopias burocratizadas. Quanto tempo é necessário para construirmos uma reflexão?

A falta de reflexão conduz o diagnóstico e a crítica da falha ética a respostas morais. Fica-se devendo a resposta política. Não são apenas as ditaduras que entranham a intimidade das pessoas. O imaginário reservou à psicanálise o lugar de intérprete de significados. Um fato reportaria sempre a outro que o explicaria. Mas desde o início vemos que a obra de Freud se debruça sobre os questionamentos de como um processo se transforma em produto cultural, de como os estímulos que nos atingem a partir do corpo ou do mundo se transformam em imagens, sonhos e pensamento.

Seria mais próprio definir a função da psicanálise na passagem da natureza para a cultura. Assim, se no sentimento de angústia podemos figurar fantasmas, no horror, na dor, há o vazio representativo, vazio de forma, vazio onírico. Donald Meltzer dizia que os primórdios do sentimento de beleza estão na emoção do bebê ao ver o rosto da mãe que o compreende. 

Configurar a beleza de um projeto que corresponda à dimensão de nossos recursos e nossos impasses torna-se hoje condição de sobrevivência.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).

[1] Este artigo foi originalmente publicado na Folha de São Paulo, em 2005. Foi contemporâneo ao congresso da IPA no Rio de Janeiro acerca do tema Trauma. A atualidade da análise desenvolvida é a indicação para sua republicação.

Tela de Ivan Serpa. A foto é capa do catálogo da Mostra Dor Forma Beleza, realizada na Estação Pinacoteca de São Paulo em 2005, curadoria Olivio Tavares Araujo e Leopold Nosek.

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