Pelos caminhos de Minas: um congresso das diversidades

Observatório Psicanalítico – 111/2019

Pelos Caminhos de Minas: um Congresso das diversidades

Rossana Nicoliello Pinho (SBPMG)

 

A antropóloga Favret – Saada, em seu artigo “Être Affecté” (1990), pousa seus estudos sobre os fenômenos quando da submersão cultural, utilizando-se da expressão “afetar-se“ como uma modalidade do aculturamento, uma oportunidade de experimentação das percepções e pensamentos do outro, mostrando que o adentrar na cultura nos coloca frente ao risco de um certo tipo especial de “feitiço”, mas sem que isso nos coloque como invasores de fronteiras, num risco de con-fusãoe perda de identidade.

 

Diz Saada: “Afirmo, ao contrário, que ocupar tal lugar da feitiçaria não me informa nada sobre os afetos do outro; ocupar tal lugar, afeta-me, quer dizer, mobiliza ou modifica meu próprio estoque de imagens, sem contudo instruir-me sobre aquele do meu parceiro.”

 

E mais adiante: “Mas – e insisto sobre esse ponto, pois é aqui que se torna eventualmente possível o gênero do conhecimento a que viso – o próprio fato de que aceito ocupar esse lugar e ser afetada por ele, abre uma comunicação específica com os nativos: uma comunicação sempre involuntária e desprovida de intencionalidade (…)”

 

Se seguirmos pelos caminhos do afetar-se, certamente teremos uma encruzilhada: “militantes narcisistas” e suas primícias de sobrevivência em íntimo conflito com o “exército” da alteridade, essa proposta civilizatória que sugere o altruísmo e a empatia como modalidades relacionais. 

Empatia, do alemão einfühlung – que significa comunhão afetiva, seria um paradoxo na constituinte que rege o ‘narcisismo das pequenas diferenças’, pois, essencialmente e não há como negar tal origem, somos filhos das in-diferenças, dos ideais demarcados, da fúria frente à frustração de não ser o outro ou de não poder controlá-lo e principalmente, afligidos pelo perigo de que o outro se sobressaia e ocupe, permanentemente, o lugar dos ideais. Daí tanto assombro frente às diferenças entre os povos e suas culturas.

 

E então me vêm à lembrança a história de Babel. No Gênesis, o Criador ordenou, tal era seu status das alturas, que os povos se espalhassem, mesclando a terra. Mas contrariando as ordens, essas que na sua essência promoviam caminhos novos para o mundo, a fim de que a raça humana se multiplicasse em diversidades, os povos se unificaram em um único e irrefutável desejo: o de ocupar o lugar máximo do cume e não os andares da alteridade, falando uma mesma língua, em uma fantasia de unificação de raças e culturas. A punição veio servida em “fino cálice” (ou calem-se), determinando que a diferença seria uma eterna vestimenta dos povos.

 

Voltemos aos tempos atuais, momento no qual a Psicanálise propõe que embrenhemos pelo campo do desconhecido, adentrando culturas, reconhecendo fronteiras e abrindo os braços para as comunidades, ainda que saibamos da “feitiçaria” que nos espera. E nesse desafio, também é nossa missão lidar com os contornos de nossa identidade profissional, sem correr o risco de doutrinação do outro, de adesão cega a princípios ou deformação de leituras para melhor encaixe das diferenças.

 

O rabino/filósofo Newton Bonder nos alerta para essa intimidade frente ao risco do anfitrião quando da abertura de sua casa, ou seja, o perigo de afetar-se pelo hóspede visto como um certo estranho, ainda que familiar. “O que se traz para casa quando se é anfitrião é um outro, que não é uma cópia de nós sobre a camuflagem de outro”, diz Bonder.

 

E é da feitiçaria desse encontro, desse susto que é identificar a diferença no semelhante, a origem da matéria prima de um dos fios do tecido cultural, um tipo especial de manto que des-cobrea todos, mas que ao mesmo tempo nos une, assim como na colcha de “fuxico”, essa arte mineira de integrar as diferenças.

 

Foi essa a meada de múltiplas cores que teceu a identidade do último Congresso Brasileiro de Psicanálise, em Minas Gerais, sob a sensível regência da Federação Brasileira de Psicanálise (FEBRAPSI) que confiou às mãos mineiras a Arte de costurar um encontro psicanalítico. Essa abertura, a qual conseguiu sobrepor a prática sobre a teoria, significou uma certa reedição de uma Babel, reapresentando o cenário desafiador quando da união dos diferentes.

 

Contrariamente à ousadia dos povos babilônicos que insistiam na unificação, esse Congresso seguiu a des-ordemcriativa das mesclas e fundamentou-se no encontro de várias línguas e seus diferentes olhares. O fenômeno do afetar-se contaminou a todos e vimos um aglomerado de povos, caminhando por uma espécie de “líquidos intersticiais”, esses facilitadores das trocas entre as células, sem que essas percam as suas identidades.

 

A “feitiçaria“ nomeada por Saada foi recebida de braços abertos pela Federação, que apostou no simples sobre o sofisticado e fez transbordar de emoção aqueles que se permitiram entrega à sonoridade das vozes das crianças, essas que hoje lutam pela sobrevivência de um projeto ameaçado pelo abandono dos investimentos sócio-culturais.

 

Esse Congresso fez da Psicanálise uma anfitriã por excelência, oferecendo um banquete farto de mesas, com diversidade de idiomas, abrindo espaço para pensar o estranhamento, entre teorias de diferentes linhas.

 

Politizou-se como uma cidade aberta, reconhecendo ideias de outros “reinos”, sem a ameaça dos enforcamentos por desobediência e traição aos colonizadores. Sensibilizou-se para os acontecimentos sociais, oferecendo a Psicanálise para o entendimento da dor e do desamparo e abriu os caminhos culturais, permitindo que a Arte mineira circulasse por entre os povos, que do sorriso às mãos estendidas, reconheceram os artistas, esses que ultimamente tem sido alvo de descaso e ingratidão.

 

Em um movimento múltiplo e ao mesmo tempo integrado, a Federação abriu caminho para um pequeno grupo de psicanalistas mineiros, que munidos de coragem e boa intenção, revivendo os tempos dos Bandeirantes nessas terras, abriram espaço para seus visitantes, enfrentando percalços nas “matas“ ainda sem conhecimento, mas sem perder a determinação de quem realiza um sonho.

 

Ao mesmo tempo, anfitriões e hóspedes, nossas montanhas abriram seus braços para um povo de cada lugar, cenário que nos fez reconhecidos pela entrega do melhor de nós, num afetar-se mútuo, momento que pousará sob os escritos de mais um capítulo importante da história das Minas Gerais.

 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).

 

Foto da tela do artista mineiro Samora Délcio que expôs seu trabalho no “Caminhos de Minas”, projeto patrocinado pela Febrapsi.

 

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