João Gilberto e os Oxímoros

Observatório Psicanalítico – 112/2019

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.

João Gilberto e os Oxímoros 

Miguel Calmon du Pin e Almeida (SBPRJ)

Morreu João Gilberto. Toda vez que morre um “joão gilberto” nos perguntamos o que morreu de cada um de nós com ele. Irremediavelmente. E todas as minhas associações me levam para coisas simples e essenciais.

“O mar quando quebra na praia é bonito, é bonito…”, disse Caymmi.

Simples assim. “Complexíssimamente ” simples. Assim era a música de João Gilberto.

“É só isso meu baião/ e não tem mais nada não/ o meu coração pediu assim/ só, bim, bom, bim….”

“Meu filho, vá chamar seu pai no Veloso para jantar”, era o que ouvia todas as noites de minha mãe, algo em torno de 18:30h. Nasci na rua Prudente de Moraes, quase esquina da então rua Montenegro, hoje rua Vinicius de Moraes. Para atender ao pedido de minha mãe, meu itinerário consistia em atravessar a rua Montenegro (não, na época não passavam carros por lá. Jogávamos bola na rua), entrar no bar onde meu pai se encontrava com sua turma de amigos bebendo chopp e chamá-lo para jantar.
Dizendo assim, parece tarefa fácil. Ledo engano. Meu pai fazia parte daquela juventude de Ipanema dos anos 50 e a conversa no bar era sempre muita animada, o que me rendia o sedutor convite: “meu filho, senta aí e pede uma coca-cola. Já estamos indo.” Uauuu! Naquela época coca-cola era coisa de fim de semana, se tanto. Estávamos em 1957. Eu tinha quatro anos.

No modo singular de me ver tocado pela presença de João Gilberto, a Ipanema da minha infância retorna com vigor e saudade. Não consigo pensar em sua música sem me ver invadido por estas lembranças. Talvez por um certo modo de levar a vida naquela época, uma certa despretensão profundamente pretensiosa.

Não lembro de João Gilberto no Veloso. Tenho a presença viva de muitos outros que vieram a se tornar precursores e seus parceiros na bossa nova, gente do cinema novo, dos cronistas de uma época, ou simplesmente boêmios ou personagens folclóricos de uma Ipanema distante. Mas lembro de escutá-lo na vitrola incessantemente da minha casa por todos os anos seguintes. O LP “Chega de Saudade”,eu sabia de cor.

Em tudo o que fez, o que mais me impressionava era a sua simplicidade. Tudo fluido, orgânico, onde, por vezes, o fim emendava no começo e assim, permanecíamos cantando infinitamente a mesma canção. Quase um efeito mântrico tomava conta de mim. Somente mais tarde fui aprender o valor da repetição, tão anedoticamente presente em sua vida.

Acho que foi o Nelson Mota que definiu de João Gilberto como “o máximo do mínimo”. Perfeito. Belíssima definição para a complexidade que João Gilberto fazia soar tão simplesmente. Tamanha a singularidade presente em seu trabalho que nenhuma música sobrevive incólume depois de gravada por ele.

Vocês já tentaram escutar “Estate” em outra gravação? “O pato”?

Na verdade, eu já sinto saudade de João Gilberto há muito tempo, porque, ao contrário de sua complexissíma simplicidade, o mundo cada vez mais tem se tornado careta, chato, dominado por pensamentos que se pretendem únicos, pelo politicamente correto abolindo a dimensão poética de tudo o que nos cerca.

Toda minha esperança reside no que o baiano de Juazeiro, dentre tantos outros que insistem em trazer à tona a poesia presente em cada barquinho que vai e vem, deixou dentro de cada um de nós.

Aí, diante desta presença que nos inspira, cantaremos incansavelmente até o dia raiar.

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