Observatório Psicanalítico – OP-Editorial novembro/2023

 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Sódepois 43

Novembro/2023

Iniciamos o mês de novembro com o 29º Congresso Brasileiro de Psicanálise da FEBRAPSI, realizado em Campinas. Os quatro dias de intensas atividades científicas e sociais não foram suficientes para todos os abraços e encontros que ficaram suspensos durante os anos em que sobrevivemos à pandemia e a nossa única opção era vermos uns aos outros através das janelas do Zoom que possibilitaram que a vida científica continuasse fluindo.

Sedentos por estes reencontros, circulamos pelo centro de convenções, nos perdemos à procura de salas, esperamos em filas para assistir aos colegas e, por fim, pudemos brindar juntos na expectativa de que o próximo encontro não demore tanto tempo. O burburinho deste Congresso nos conta que a psicanálise continua viva, segue fértil, nos inquietando e convocando a pensar.

A temática “O Eu e o Isso: afetos em emergência”, celebra o centenário de “O Eu e o Isso” e nos remete à capacidade de Freud de sempre se rever, nos deixando um legado que está em constante expansão. O ensaio de Zelig Libermann (OP 447/2023), diretor científico da FEBRAPSI, propõe questões que reafirmam a importância e atualidade da teoria pulsional para pensarmos os acontecimentos do mundo atual: “Por que a guerra que empurra os homens à matança e às feridas que os deixarão inválidos e sofrendo para o resto da vida?”, “Como ultrapassar a barreira que se opõe à civilização e à natural inclinação dos seres humanos a agredirem-se uns aos outros?”

Enfrentamos, ainda em Campinas, uma virada de tempo marcada pela chegada de um ciclone extratropical, aqui descrita nas palavras de Ana Valeska Maia Magalhães, de nossa equipe da curadoria: “No exato momento da passagem do ciclone, fiz a travessia do centro de convenções para o hotel; o vento estava tão forte, mas tão forte, que precisei me esforçar muito para não cair. Quando chegamos do outro lado, com as paredes barrando a força do vento e dando aquela sensação de ufa!, comentei com a Malu que era o primeiro ciclone da minha vida, pois no Ceará nunca apareceu ciclone; lá chuva é comemorada e quando o céu fica carregado a gente diz: tá bonito pra chover; foi aí que ela me olhou com ares proféticos e disse: pois vai se acostumando, os ciclones serão cada vez mais frequentes e se juntarão, formando furacões… ”

Cada vez mais frequentes têm sido as notícias e imagens de catástrofes ambientais. Apenas no último mês, enquanto as regiões Sul e Sudeste foram atingidas por tempestades e ciclones, vimos imagens de uma nuvem de fumaça sobre Manaus, do Pantanal em chamas e de comunidades ribeirinhas da Amazônia isoladas pela seca. As vias que conectavam estas comunidades a centros maiores, garantindo abastecimento e serviços básicos, eram os rios, mas seu leito secou e as jangadas, que seriam seus meios de transporte, tornaram-se bancos encalhados num leito rachado. As fotografias destas cenas nos remetem a cenários distópicos do cinema e da literatura. Mas nada disso é ficção, a distopia é aqui. Além das imagens de destruição de uma Amazônia aparentemente distante, sentimos na pele a onda de calor que afetou os grandes centros urbanos. São Paulo, 38 graus. Rio de Janeiro, sensação térmica de 60 graus. A notícia bate em nossa porta: as temperaturas médias globais subiram acima de dois graus desde a revolução industrial, o que significa que nos aproximamos a passos largos do limite de aquecimento global apontado pelos cientistas como um ponto sem retorno, o que nos encaminharia para uma catástrofe ambiental. Ainda há alguém que insiste em não enxergar?

No ensaio “Pálido ponto azul” (OP 446/2023), Malu Gastal, a mesma colega que alertou para o risco dos ciclones se tornarem furacões, homenageia o 89º aniversário de Carl Sagan nos atentando para a singeleza da imagem da terra vista do espaço e para a insignificância da humanidade diante de tão vasto universo. Somos mera poeira cósmica, mas capazes de maltratar a tal ponto nosso habitat que o resultado destas ações poderá nos levar à autodestruição como espécie. A mesma matança que dirigimos a nossos semelhantes está voltada também ao planeta, nossa única casa. Acompanhado pelo vídeo de Sagan e pela música de Jorge Drexler, o texto nos deixa uma réstia de esperança: “somos Eros e Thanatos, somos vida e morte, amor e ódio. Somos natureza e cultura. (…) Somos poeira de estrela, mas construímos muito com essa argamassa”.

O que pode a psicanálise quando o mundo se despedaça? Esta foi a pergunta que norteou a mesa redonda organizada por nossa curadoria no Congresso e que nos trouxe importantes reflexões de Cecilia Orsini, Liana Albernaz e Malu Gastal, com a coordenação de Beth Mori. Talvez, nós psicanalistas possamos muito pouco diante de tamanha destrutividade, mas nossa ousadia é seguir pensando, criando e investindo libidinalmente as questões que se apresentam, tanto na clínica quanto na cultura.

Neste sentido, o ensaio “OnlyFans ou fanáticos” de Luciana Saddi (OP 445/2023) propõe um questionamento sobre o destino da sexualidade humana a partir de um fenômeno da cultura contemporânea, a rede social OnlyFans. Na rede, pessoas famosas ou anônimas comercializam conteúdos exclusivos “apenas com fãs”, majoritariamente de cunho sexual, estereotipado, repetitivo, que retratam principalmente mulheres, muitas em cenas infantilizadas, numa espécie de pasteurização da imagem e da pornografia, que deixa pouco espaço para a construção da fantasia. A autora traça um paralelo com a trilogia teatral de Maurício Paroni de Castro, que aborda os diversos destinos do sexual, da pornografia, do erotismo, deixando a sexualidade como um campo aberto a ser explorado.

Em nossa primeira tentativa de publicar este texto, percebemos um erro no envio do texto ao grupo de e-mails. Ao investigarmos, descobrimos que algumas das palavras utilizadas pela autora foram filtradas pelos algoritmos do Google. Solucionado o problema, fica a questão: psicanalistas não podem mais falar (ou escrever) sobre sexo? Ficamos com o impacto da censura que impediu que nossas palavras circulassem e, ainda, com o fato de que não havia nem mesmo um humano que nos atendesse por parte da empresa, apenas a inteligência artificial. Temos uma ideia de qual foi a expressão censurada, mas não a mencionaremos em nosso “Sódepois” para que não caiamos na malha fina dos algoritmos uma vez mais. O contraditório é que esta mesma malha diariamente é burlada para a disseminação de Fake News e discursos de ódio, entre tantos outros usos que se faz das redes.

 Em nosso podcast Mirante, seguimos com o olhar para “O Sexual na Pólis”. Publicamos o quarto episódio da série, “A literatura libertina e a analidade na psicanálise”, com a participação de Berta Hoffmann Azevedo e da professora e crítica literária Eliane Robert Moraes, que dialogaram sobre analidade e sadismo a partir da obra literária de Marquês de Sade. Para a psicanálise, a sexualidade segue complexa, composta, polimorfa. Pensar o erotismo é sair da convenção, trazer à luz o incômodo e a inquietude.

 Ainda no campo das experiências sensoriais e do prazer estético, Mariana Arruda Botelho (OP 448/2023) nos leva a uma visita à 35ª Bienal de Arte de São Paulo, guiada pelo olhar sensível de quem vê a arte conectada com o tempo em que vivemos. Seu ensaio “Faz escuro mas eu danço” entrelaça a edição atual da feira, que tem como tema “Coreografias do impossível”, à edição anterior (2021), “Faz escuro mais eu canto”. A inovação desta edição – que conta com quatro curadores, sendo duas mulheres negras, trabalhando horizontalmente para escolher obras que atravessam a diversidade da cultura contemporânea – se contrapõe à notícia de que, mesmo neste ambiente, trabalhadores da mostra denunciaram em  abaixo-assinado a precarização do trabalho pela organização.

O ensaio mergulha no documentário “Bait”, do israelense Amos Gitaï, que remete ao antigo conflito no Oriente Médio através da história de uma casa em Jerusalém que foi habitada alternadamente por palestinos e judeus ao longo da história e, no momento do filme, é de propriedade de um judeu e está sendo reformada por um trabalhador palestino. Ambos são entrevistados pelo cineasta. A fala destes homens transmite uma mensagem de esperança de que seria possível a coexistência entre os povos, apesar do ódio, das rivalidades e das diferenças. Impossível não o associar com a guerra atual que testemunhamos.

Coexistência tem sido para todos nós um ideal precioso e ao mesmo tempo muito difícil de alcançar. A guerra desencadeada pelo ataque do Hamas a Israel em 7 de outubro se estende e, com ela, suas consequências para os povos judeu e palestino. Ainda que tenha sido possível uma breve trégua, com a libertação de uma parte dos reféns, a maioria crianças e mulheres, e a entrada de ajuda humanitária em Gaza, a complexidade e a gravidade do conflito se perpetuam, com consequências e mobilização de afetos muito além do Oriente Médio, como nos mostram os ensaios de Fernanda Soibelman Kilinski (OP 449/2023) e Sylvain Levy (450/2023).

Em “É preciso falar sobre antissemitismo”, a autora parte da própria experiência como mulher judia para abordar o antissemitismo e o antissionismo, e convida a todos ao letramento sobre o tema, que tem sido presente em nosso grupo de discussões desde o último mês, mostrando-se como um tema que não se esgota. Exemplo disso foi a mesa redonda sobre antissemitismo que aconteceu no Congresso, e que devido à lotação da sala e demanda de muitos colegas que não puderam participar foi reeditada em evento online organizado pela FEBRAPSI em 16 de novembro. Mais uma vez, a sala cheia, mais uma vez, um espaço que não foi suficiente para abordar toda a complexidade da temática.

Em “Dilemas dilacerantes ou Entanglement”, Sylvain Levy sobrepõe a existência em si mesmo de um Sylvain judeu e um Sylvain humanista que, no fim das contas, são um homem só. A associação com o conceito de “entanglement” ou sobreposição, proveniente da física quântica, nos leva a pensar sobre o emaranhado de afetos e pensamentos a que estamos submetidos. A divisão entre amores e ódios despertados pela guerra faz com que ela se presentifique aqui, em cada um de nós, marcada por nossas histórias pessoais e transgeracionais. 

Encerramos os textos inéditos de novembro com a “Carta a um jovem psicanalista (II)” (OP 451/2023) que Vanessa Figueiredo Corrêa escreve para as novas gerações. Em dois atos, recorda sua experiência de participação na mesa sobre Annie Ernaux no último congresso, em que as palavras se embaralharam para, por fim, tomarem um rumo surpreendente e exitoso; e um momento anterior, em que se deparou com um livro sobre a vida secreta dos gnomos na sala de espera de uma analista. Considera que o inconsciente tem algo em comum com estas criaturas mágicas, vive às escondidas e, quando menos esperamos, escapa pelas frestas e se apresenta. Do encontro entre os dois atos, conclui que são estes acontecimentos fortuitos que constroem as pontes e estradas pelas quais transitamos em nosso processo formativo.

Em nosso espaço de rememoração, celebramos o 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, com o ensaio “Racismo, esse preconceito que nos habita” de Marcela Pohlmann (OP 357/2022), cujas palavras seguem atuais e necessárias. Na semana em que a Argentina elegeu o presidente de ultradireita, Javier Milei, relembramos apreensivas a voz esperançosa e sensata de Mafalda, personagem do cartunista Quino, com o ensaio “Mafalda não morreu. Quino se vai… e nos deixa Mafalda” (OP 200/2020), de Dora Tognoli. E lamentamos a partida de Alberto da Costa e Silva, diplomata, poeta e historiador brasileiro, homenageando-o com o ensaio “Arte, literatura e a criação do amanhã” (OP 181/2020), de Ana Valeska Maia Magalhães. Talvez, o caminho para a criação do amanhã esteja mesmo na liberdade das palavras, na arte e na literatura. 

Não será fácil, mas este é um mês de despedidas para nossa curadoria. Renata Zambonelli, que muito se dedicou ao Mirante para que ele se tornasse o que é hoje, deixa a equipe responsável pelo nosso podcast. Despedimo-nos também de Daniela Boianovsky, presente em todos os projetos do OP desde 2019, sempre contribuindo com perspicácia e sensibilidade, nossos “olhos de lince” na curadoria dos textos. Para ambas, deixamos aqui nosso agradecimento pela parceria, antecipamos as saudades e esperamos que este seja um “até breve”.  

Gostaríamos de expressar uma vez mais nosso desejo pela paz e pelo direito de coexistir de todos os povos. Ainda que este possa ser um desejo utópico face a tamanha destrutividade entre os povos e em relação ao nosso planeta, não nos cansamos de sonhar. Dançaremos, apesar da escuridão. 

Um abraço afetuoso a todos,

Equipe de curadoria,

Beth Mori (SPBsb),  Ana Valeska Maia (SPFOR), Daniela Boianovsky (SPBsb), Gabriela Seben (SBPdePA), Gizela Turkiewicz (SBPSP), Helena Cunha Di Ciero (SBPSP) e Vanessa Corrêa (SBPSP)

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Imagem: foto de autoria de Beth Mori, Campinas, 2023.

Categoria: Editorial

Palavras-chave: Editorial, Observatório Psicanalítico, Congresso, Bienal de Arte, Destrutividade, Mudanças Climáticas, Coexistência.

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Categoria: Editoriais
Tags: Bienal de Arte | Coexistência | Congresso | destrutividade | editorial | Mudanças climáticas | observatorio psicanalitico
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