Observatório Psicanalítico – OP 451/2023

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Carta a um jovem psicanalista (II)

Vanessa Figueiredo Corrêa – SBPSP

Querido colega,

Não pensei que voltaria a te escrever, a minha primeira carta parecia satisfazer a necessidade de transmitir, ainda que precariamente, o que eu considero que seja a formação do analista. Mas dois fatos se tocaram e geraram em mim a demanda de falar com você de novo. 

Na verdade, são duas histórias que eu preciso te contar – uma do meu último ato público como psicanalista, no Congresso, em novembro; e outra da entrevista que fiz para entrar na formação, ou seja, do primeiro momento em que pisei em um lugar que representava oficialmente a SBPSP, instituição a que me associei. Talvez seja uma história só, em dois atos, que faz uma ponte ligando todos os pontos da minha vida em instituições psicanalíticas e o que elas representam.

Primeiro ato. Quando falei pela primeira vez em um Congresso de psicanálise e nada saiu conforme planejado. 

Eu estava ansiosa no último Congresso da Febrapsi porque a mesa em que eu falaria era logo pela manhã, no primeiro dia. Tinha a vantagem de ter como companheiras de palestra duas amigas muito queridas: a Helena Cunha Di Ciero e a Gizela Turkiewicz e estar entre amigos é sempre um alento. Também tinha a meu favor o fato de ser apaixonada pelo tema e pelo título da mesa – “Annie Ernaux: a voz da mulher como acontecimento”. 

Acordei cedo para tomar café, banho e secar os cabelos; escolhi cuidadosamente um vestido azul royal de linho e um sapato de salto nude que achei combinarem bem com a ocasião, peguei a bolsa com maquiagem e tudo o que eu precisava para aquele dia, além da pasta com as folhas que eu leria na apresentação. Estava me sentindo feliz e confiante quando chamei o Uber que me levaria até o Congresso.

Chegando o carro, saí apressadamente e não vi um pequeno degrau que havia no meio da calçada. Pisei com toda força no chão, como se o piso fosse plano. Esse desnível, de uns cinco centímetros apenas, fez com que eu me desequilibrasse e viesse abaixo, em queda, e permanecesse por alguns segundos deitada de bruços na rua; joguei longe todos os objetos que carregava: bolsa, celular, Annie Ernaux, pasta com folhas e minhas palavras sobre a voz. Sobrou só eu: uma mulher de azul deitada no asfalto, nas ruas de Campinas, sem nada nas mãos e com os joelhos sangrando.

Não li minhas folhas no Congresso, não encontrava mais sentido nelas, a sensação da queda ocupou todos os meus espaços e minha intuição dizia que essa era aquela verdade provisória, o sentido que raramente captamos nas coisas e, portanto, a minha contribuição mais real possível.

Homenageei Ernaux fazendo auto-ficção da minha queda, costurei mal com Freud, Angélica Freitas e Chimamanda; suturas, não de cirurgiã plástica, mas de soldada em campo de batalha. De psicanalista.

Segundo ato. Quando cerca de treze anos antes entrei pela primeira vez na sala de uma analista para ser entrevistada no processo de seleção da SBPSP e assim a instituição poderia verificar minha aptidão para fazer parte do clube ou não (mentira, eles queriam saber se eu não era maluca, basicamente).

Mas esse ato não começa propriamente na sala da analista e sim na sala de espera. Cheguei bem adiantada, e enquanto aguardava comecei a folhear os livros da estante da minha avaliadora, talvez inconscientemente avaliando-a a partir dos livros que ela escolhia para quem esperava.

Ela devia atender crianças, porque o livro que peguei era sobre a vida secreta dos gnomos. Isso mesmo: um tratado bem completo sobre tudo o que acontecia no mundo dos gnomos, desde quem era o prefeito, tipo de alimentação, vestuário, regras de convivência, plantas de casas, sistema de irrigação com ilustrações e legendas muito bem feitas. Tudo considerado com muita seriedade no complexo sistema social que abriga esses seres mágicos.

Quando ela me chamou para a entrevista eu estava totalmente imersa nesse mundo fantástico, então entrei em sua sala, sentei-me à sua frente, ela pegou um papel – meu memorial – e começou a me entrevistar.

Lembro de ter sido uma conversa amigável, sem críticas, mas ela apontou uma coisa: por que será que os candidatos usam tão pouco a criatividade para escrever esse memorial? Devo ter ficado envergonhada porque eu tinha feito todo o esforço do mundo para elaborar um memorial claro, objetivo, sintético e chato, que ocultasse qualquer propensão minha à fabulação e sobretudo que não me fizesse parecer maluca. Mesmo assim fui aprovada.

Eu reencontrei também no Congresso, pela primeira vez depois de todos esses anos, essa entrevistadora, então as histórias se cruzaram dentro de mim e percebi que carreguei os gnomos por toda a minha formação.

O ponto que quero discutir com você é o quanto o que imaginamos que se espera de nós nem sempre corresponde à realidade, e o quanto as quedas e os gnomos fazem parte do percurso, mais do que imaginamos. É preciso abandonar os papéis depois de tê-los cuidadosamente fabricado e ver as palavras em queda livre, mesmo depois de se ter certeza de que o discurso estava solidificado. É preciso também, às vezes, fazer parte de um complexo sistema social que se apresenta sobretudo em congressos e observar gnomos de todos os cantos do país.

Um dia, durante a formação, escrevi um poema assim:

sou poeta

porque ando

quase sempre

nua

é no encontro

da minha pele

com a rua

que a palavra se insinua

O psicanalista, assim como o poeta, anda atrás da palavra, ou melhor, espera que a palavra chegue até ele. Passamos muito tempo entre Freud, Klein e tantos teóricos da psiquê que às vezes nos esquecemos de que o inconsciente escapa pelas frestas, e de que sonhos, sintomas histéricos, chistes e uma porção de elementos periféricos constituíram as bases da psicanálise por veicularem o que há de menos dissimulado no mundo interno. Esquecemos dos pequenos desníveis que estão por todo lado.

Então é sempre bom ficarmos atentos a essa coleção de percepções e acontecimentos fortuitos que constroem nossa sensibilidade e formam as pontes e estradas, direcionando secretamente a ordem das palavras que surgem no nosso cotidiano profissional, fazendo parte do processo autoral chamado “formação”. 

É sobre isso.

 Abraços fraternos

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Palavras-chave: formação, psicanalista, inconsciente, congresso de psicanálise

Categoria: Instituições Psicanalíticas 

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Tags: Congresso de Psicanálise | formação | inconsciente | Psicanalista
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