Observatório Psicanalítico-OP-Editorial Março/2025

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

Sódepois 59

Março/2025

Águas de março – os bastidores do Mirante, os chamados da cultura e as necessidades institucionais

“É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança” – como nosso lema de março escolhemos esse provérbio africano, largamente utilizado para convocar o espírito de coletividade e alertar sobre a responsabilidade individual na construção da sociedade– a frase vale, em primeiro lugar por causa de um acontecimento cultural: no dia 13 desse mês a Netflix lançou a série “Adolescência”, que teve mais 66 milhões de espectadores, já nos dez primeiros dias no ar. Tal fenômeno de audiência demonstra que a aldeia inteira está falhando, pois a série retrata, no mês em que se comemora o dia das mulheres, as causas e consequências de um feminicídio, cometido por um menino de 13 anos. A trama não deixa impune nenhum personagem: pai, mãe, escola, sistema de saúde mental, sistema jurídico, todos estão comprometidos e têm uma parcela de responsabilidade pela situação de abandono digital e exposição a ideias misóginas e extremistas a que crianças, adolescentes e adultos estão submetidos cotidianamente. Ficção se mistura com realidade.

Assim, iniciamos nosso “Sódepois”, alertas, alarmadas. Acordamos, para, em seguida, poder comemorar a notícia de que o Mirante, o podcast do Observatório Psicanalítico, acaba de ser premiado pela IPA com o segundo lugar na categoria Cultura, um reconhecimento por nossa contribuição na construção de coletividade, ao promovermos o diálogo da psicanálise com outros campos do conhecimento. Ressaltamos, que o primeiro lugar dessa categoria foi concedido à Revista Calibán, da Federação Psicanalítica da América Latina (FEPAL), à qual parabenizamos pelo importante papel na divulgação do pensamento psicanalítico de nossa região.

A premiação ao Mirante é um presente para nós da Curadoria do OP, composta por seis mulheres: Ana Valeska Maia, Beth Mori, Gabriela Seben, Giuliana Chiapin, Lina Schlachter e Vanessa Corrêa, indicando que está na direção correta o extenso trabalho por trás de cada um dos 40 episódios existentes – pesquisa de quais assuntos estão em pauta, cotidianamente, nos meios de comunicação, para assim gerar a discussão dos temas que serão abordados, o que leva à escolha dos convidados (sempre um psicanalista da IPA e um especialista de outra área do conhecimento), seguida da leitura e pesquisa das publicações de cada convidado, permitindo a elaboração do texto introdutório, negociação sobre agenda, gravação, edição, escuta posterior, aprovação, lançamento e divulgação. 

Sendo assim, o provérbio africano serve também para o Mirante e para o trabalho do OP, já que estamos implicadas com a produção e disseminação do  conhecimento abrindo canais de debate de largo alcance. Acreditamos que estes conteúdos disponíveis gratuitamente em todos os tocadores de áudio, podem afetar pais, cuidadores, professores, estudantes e profissionais já experientes. Dessa forma, pedimos a contribuição dos leitores do OP e dos ouvintes do podcast na divulgação deste trabalho.

O eixo atual do Mirante, “O sexual na Pólis”, mostra-se em consonância com tempo e espaço da cultura mundial, tanto que os títulos dos dois últimos episódios foram: “Violência contra as mulheres”, e “Corpos sem corpos: o mundo virtual hoje”. Já vínhamos abordando os mesmos assuntos tratados no fenômeno “Adolescência”.

No último episódio, “Violência contra a mulher”, a feminista professora doutora e criminologista Carmen Hein de Campos, em clima de sororidade, conversou com a psicanalista Susana Muszkat (SBPSP). Ambas falaram sobre a importância do enfrentamento da violência contra mulheres a partir do trabalho com a comunidade. 

Em outra frente, mas ainda com o intuito de promover a coletividade e o exercício democrático, levando em conta que em 14 de março iniciariam-se as eleições para escolha dos representantes da América Latina para o Board da IPA, a Curadoria tomou a iniciativa de convidar, ao mesmo tempo, todos os candidatos ao cargo para escreverem ensaios sobre os acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais. Ou seja, um convite para que cada um pudesse mostrar sua construção de pensamento, através da escolha de temas, do uso das palavras e a condução do pensamento. 

Os nove candidatos aceitaram o convite, começando por Olga Santa María Pombo (APM, México), que tratou de “Fanatismo, Amae e o Sinistro(ou “O Estranho”) em tempos turbulentos” (OP 562/2025), em que a autora explora a interconexão entre fanatismo, “amae” (termo japonês que se refere a “uma dependência da geisha – primeiramente da mãe e, posteriormente, de qualquer autoridade. É uma súplica por ser agradado a partir de uma proximidade familiar e íntima, reproduzindo-se em diversas relações de poder”) e o “sinistro”, especialmente em tempos turbulentos. O fanatismo, caracterizado pela substituição da consciência individual por uma ideologia e pela desumanização do outro, impede a integração de nuances e busca o poder perverso. O “amae”, uma dependência emocional infantil, pode ser explorado por líderes para manter o poder. A relação entre ambos se manifesta no Sinistro, onde o familiar se torna estranho, gerando angústia. A psicanálise, através da alteridade, talvez ofereça uma espécie de “antídoto” para o fanatismo, promovendo a integração e a manutenção da vida psíquica.

Em seguida, a candidata ao Board Margareta Hargitay Wieser (Associação Venezuelana de Psicanálise, ASOVEP) e Instituto Latino-americano de Psicanálise (ILaP) trouxe notícias da vida institucional com o ensaio “ILAP: um projeto de diversidades” (OP 563/2025). Dessa forma, ficamos sabendo que o ILaP, Instituto Latino-Americano de Psicanálise, criado em 2006, tem como objetivo formar psicanalistas em países da América Latina que não possuem sociedades filiadas à IPA e à FEPAL, adaptando os padrões internacionais de formação às realidades locais, sem perder as referências de qualidade e ética. O ILaP valoriza a diversidade cultural e socioeconômica da região, promovendo uma formação personalizada que considera as particularidades locais e individuais. O uso de recursos online, como seminários, facilita o acesso à formação em áreas com recursos limitados, e o instituto busca criar um sentimento de pertencimento à psicanálise latino-americana. 

Ainda sobre a vida institucional, Monica Vorchheimer (APdeBA, Associação Psicanalítica de Buenos Aires) trouxe “Um dia na vida de um representante latino-americano no Board” (OP 565/2025) em que narra um dia na vida de um representante latino-americano no Board da IPA, revelando a complexidade deste trabalho. Em tom informal, começa descrevendo a leitura matinal de jornais, mas logo é invadida por preocupações com assuntos da instituição, demonstrando que o representante se dedica a articular consensos, elaborar estratégias e defender os interesses da América Latina na organização. A rotina inclui a análise de documentos, a comunicação constante com colegas e presidentes de sociedades, a participação em comissões e a preparação para eventos. A autora destaca a importância da negociação, da perseverança e da adaptação às diferentes culturas e contextos, além de revelar os desafios pessoais e profissionais enfrentados por ela.

No dia 08 de março, a candidata Magdalena Filgueira (APU) homenageou o Dia Internacional das mulheres publicando “8 de março – Dia Internacional das Mulheres” (OP 566/2025) em que reflete sobre a data à luz da psicanálise e do feminismo. Explorando a interseção entre o individual e o coletivo, o erótico e o político, propõe uma releitura do conceito de falo, desvinculando-o da posse individual e enfatizando seu papel nas relações de poder entre gêneros. Ela também convida a psicanálise a se abrir para novas interpretações das sexualidades e dos erotismos, considerando as mudanças sociais e culturais e a importância da escuta e da não redução na prática clínica.

O quinto ensaio foi “Tempos de Trânsito” (OP 567/2025), de Maria Pia Costa (Sociedade Psicanalítica do Peru, SPP), em que aborda a importância das instituições psicanalíticas como espaços de proteção e desenvolvimento da psicanálise, destacando os desafios e tensões inerentes à sua gestão. Enfatiza também a necessidade de equilibrar tradição e renovação, endogenia e abertura, estática e movimento, para garantir a evolução e a permanência da psicanálise. A reflexão se estende à adaptação da psicanálise aos tempos atuais, marcados pela fluidez e pela tecnologia, e à importância de abordar questões como diversidade, inclusão, elitismo e polarização política dentro das instituições. Uma pesquisa sobre o perfil dos psicanalistas latino-americanos revela tendências como o aumento da participação feminina e a necessidade de políticas inclusivas. A autora defende a realização de pesquisas periódicas para aprofundar o conhecimento sobre os psicanalistas e suas instituições, visando assim promover um diálogo contínuo sobre os desafios e possibilidades da psicanálise.

O próximo texto publicado foi escrito por Daniel Delouya (SBPSP), intitulado “LAM-IpaBoard-TriebRepresentanzs” (OP 568/2025), abordando a representação latino-americana no Board da IPA, valorizando sua vibração, união e consciência histórica e cultural. Reflete sobre a natureza da psicanálise como uma “profissão impossível”, contrapondo-a à lógica do mercado e defendendo a importância da escuta e do trabalho conjunto entre analista e paciente. A discussão se estende à análise didática, aos desafios da democracia e à necessidade de combater o fascismo nas instituições. O texto conclui com uma reflexão sobre o papel dos representantes da IPA, que devem buscar a sabedoria da escuta para arbitrar questões complexas e promover a evolução da psicanálise.

O ensaio seguinte foi “Que Mundo É Esse?”(OP 569/2025), de Sérgio Nick (SBPRJ), em que explora a apreensão diante da nova era política global, marcada por radicalismos e impulsividade. O autor questiona a eficácia da retórica inflamada e a falta de diálogo na diplomacia, que geram incerteza e desesperança. Ressalta a importância da “capacidade negativa”, que se refere à habilidade de tolerar a incerteza e a ambiguidade, tanto no trabalho clínico quanto na vida cotidiana. Nick defende a busca pelo diálogo e pela construção de pontes em um mundo polarizado, convidando a uma reflexão sobre a necessidade de mais tolerância e compaixão.

A próxima candidata ao Board a publicar foi Dalia Guzik (AMIPEP, México), que falou sobre “Desesperança vs Reparação?” (OP 570/2025), abordando a complexidade do cenário global atual, marcado por turbulências políticas e sociais que ameaçam tanto os vínculos internos quanto os externos. Destacou a importância do diálogo e da reflexão conjunta como ferramentas de reparação diante da adversidade, enfatizando que a psicanálise não pode se desconectar do contexto social e cultural. Traça também um paralelo com momentos históricos passados, como a ascensão do autoritarismo e a perseguição a psicanalistas, e alerta para o ressurgimento de tendências regressivas e tanáticas. A autora explora a dialética entre esperança e desesperança, ressaltando o potencial reparador dos vínculos psicanalíticos e institucionais, e convida a uma reflexão sobre o papel da psicanálise na comunidade, defendendo a aplicação do pensamento analítico em projetos coletivos que favoreçam processos de contenção e elaboração.

E, finalizando os artigos publicados por ocasião da eleição do Board, Gabriela Goldstein (APA, Associação Psicanalítica da Argentina), escreveu “Tempos ‘modernos’, hipermodernos: do caos à criatividade” (OP 571/2025), considerando o mundo contemporâneo, marcado por sofrimento, caos e destruição, e a importância da psicanálise para lidar com esse cenário. Explora a fragilidade dos laços sociais, a crise da subjetividade e a influência do social no psiquismo individual, destacando a necessidade de uma escuta ampliada e de um campo analítico que permita a reconstrução de um projeto de vida. A criatividade é apresentada como um refúgio e uma forma de religar Eros e Thanatos, e a arte como um espaço de reflexão sobre o inconsciente. Goldstein conclui com um chamado à infância e à capacidade transformadora da emoção, ressaltando o papel das instituições psicanalíticas na sustentação do vínculo social e na promoção da diversidade.

Concomitante aos ensaios enviados pelos candidatos a representantes do Board da IPA na América Latina, em março o OP publicou “Ainda estamos aqui” (OP 564/2025), de Adriana Rutelli Resende Rapeli (SBPSP) sobre o filme “Ainda estou aqui”, que trouxe o Oscar inédito ao Brasil, de melhor filme estrangeiro. A obra é um documento histórico e cultural que registra a violência da ditadura militar impetrada no país em 1964 e, que seguimos sofrendo seus efeitos através de atentados contra a democracia, afinal, nesse mês, o STF acolheu a denúncia da PGR tornando réus o ex-presidente e mais sete homens-militares, seus colaboradores. Mas, em defesa da arte, além da dimensão política, o ensaio explora o impacto emocional do filme, expresso, entre outros elementos, na trilha sonora e nas referências a artistas como Caetano Veloso, Tim Maia e Gal Costa, que fizeram parte da resistência e preservação da memória trazendo reflexões e metáforas: “quem sabe um índio, esperançosamente, virá impávido e surpreenderá a todos não por ser exótico, mas por ter estado oculto” (Caetano Veloso). 

Ainda sobre cinema, Eduardo São Thiago Martins e Luciana Saddi (SBPSP) contaram sobre o filme “Virgínia e Adelaide” (OP 572/2025), dirigido por Yasmin Thainá e Jorge Furtado, que retrata o encontro transformador entre Virgínia Leone Bicudo, a primeira psicanalista negra do Brasil, e Adelaide Koch, uma psicanalista judia refugiada do nazismo. O filme explora a relação analítica e a amizade entre as duas mulheres, abordando temas como racismo, preconceito e a importância da psicanálise como ferramenta de transformação. A obra propõe uma psicanálise decolonial, fruto do encontro entre duas mulheres com histórias de vida marcantes, e destaca a necessidade de ações afirmativas para promover a inclusão em instituições psicanalíticas.

E, finalizando as “águas de março”, Sylvain Levy (SPBsb) retoma o tema das mulheres no texto “Há igualdade de gênero entre médicas e médicos no Brasil?” (OP 573/2025), em que relata que uma pesquisa online realizada pelo aplicativo Medscape com 1544 médicos e médicas no Brasil revelou nuances importantes sobre a desigualdade de gênero na profissão. Embora a maioria dos participantes não perceba impacto do gênero na promoção e remuneração, as mulheres mais jovens (25 a 39 anos) relatam vivenciar mais situações de desigualdade, especialmente em relação a convites para palestras e oportunidades de chefia. Além disso, a pesquisa aponta que as médicas enfrentam mais desafios em conciliar a vida profissional e familiar, e são mais propensas a serem confundidas com profissionais de outras áreas. A pesquisa também sugere que há uma relutância das médicas em admitir assédio sexual no trabalho, e que a discriminação por idade afeta ambos os gêneros.

Assim, teve de tudo – pau, pedra e inícios de caminhos sendo discutidos na aldeia chamada Observatório Psicanalítico, e fechamos o verão com intensas preocupações, pontuadas por alegrias e muito trabalho democrático no fortalecimento do espírito de grupo.

Seguimos… 

Beth Mori (SPBsb), Ana Valeska Maia (SPFOR), Gabriela Seben (SBPDEPA), Giuliana Chiapin (SBPDEPA), Lina Schlachter (SPFOR), Vanessa Corrêa (SBPSP). 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

Imagem: série Adolescência (foto Netflix/divulgação)

Categoria temática: Editorial 

Palavras-chave: Adolescência, Democracia, Coletividade, Representatividade e Prêmio IPA

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Categoria: Editoriais
Tags: adolescência | Coletividade | democracia | Representatividade e Prêmio IPA
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