Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Sódepois 46
Fevereiro/2024
Fevereiro, o segundo mês do calendário, é o mais curto, mas em 2024 se estendeu um pouquinho, ganhou mais um dia. O ano bissexto faz lembrar a nossa inscrição no tempo que passa e também a ordem do movimento no espaço: é a Terra que se esforça para dar a volta em torno do Sol.
Nosso lugar giratório e periférico serviu como imagem para a ferida narcísica que Freud metaforicamente usou para explicitar a impossibilidade de sermos senhores em nossa própria casa. Se pequeninos em um universo vasto e inapreensível, no planeta Terra somos animais ao lado de outros, em meio a uma biodiversidade extensa e interligada que diminui com celeridade, muitas vezes pelo impacto das ações humanas, apesar do título Sapiens autoproclamado à espécie.
Contudo, somos uma espécie que cria, sonha, pensa, fantasia, delira. Nesse sentido, o mês de fevereiro de 2024 foi representativo da potência criativa humana, ao passo que apresentou o horror da dilaceração que o ser humano é capaz de produzir.
A diversidade de formas de perceber, compreender e enfrentar o mundo esteve presente no Sambódromo da Marquês de Sapucaí. Do culto ao Vodun Serpente no reino de Daomé, na costa ocidental da África à cosmovisão do povo Yanomami em “Hutukara”, os desfiles propiciaram um espetáculo de consciência crítica cultural e sociopolítica, em entrelace com o Eros da soltura dos corpos, da inventividade na composição de vestes e adornos, da riqueza dos carros alegóricos. Além disso, o Carnaval no Rio de Janeiro possibilitou o contato com narrativas mitológicas indígenas e africanas e seus laços ancestrais com outras espécies, como em “Nosso destino é ser onça”. A densa musicalidade dos Fados, o testamento da cigana Esmeralda, a saga de uma mãe negra em um passado escravocrata que se mistura aos dias atuais em “Um defeito de cor”, a cultura Yorubá, a história da cantora Alcione, entre outros temas, preencheram a avenida com os saberes e o gingado brasileiros, que também celebrou o caju como a nossa fruta nativa.
Se o futuro é ancestral, conforme anuncia o livro de Ailton Krenak, o Carnaval de 2024 foi, em sua complexidade, uma convocatória ao pensamento. A Escola campeã de São Paulo, Mocidade Alegre, levou ao Sambódromo do Anhembi um enredo baseado nas viagens de Mário de Andrade pelo Brasil, poucos anos após a realização da Semana de Arte Moderna de 1922. A jornada do poeta através da “Brasiléia Desvairada” se deu impulsionada pela percepção de que o Brasil era um país incógnito e artisticamente importador do padrão europeu. Antropofagicamente, a miscelânea cultural brasileira era deglutida por Mário de Andrade, das curvas da estética barroca, aos ritmos do carimbó, do maracatu, do frevo.
Por aqui, no OP, também viajamos. Um percurso pelos rumos do Carnaval no Brasil, no Uruguai e na Argentina nutriu a maior parte da escrita dos ensaios publicados no Observatório Psicanalítico em fevereiro. Os textos são também um convite para conhecermos peculiaridades regionais e de outros países em seu vigor de luta, resistência e reinvenção. Afinal, a miríade afetiva, cultural e política entrelaçada à festividade carnavalesca traz, em seu cerne, os conflitos humanos e seus enredos surpreendentes.
Do Rio de Janeiro, Daniel Senos, da SBPRJ, ressalta a sua relação ambivalente com a “cidade maravilhosa”. O texto destaca as contradições de uma cidade forjada na trama de um passado colonial e marcada pelo contraste de belezas naturais e segregação dos periféricos, suburbanos, pretos e pobres; assim como na ligação entre poder paralelo e Escolas de Samba, dentre outros pontos relevantes destacados pelo autor. “Entre o torresmo e a moela” (OP 465/2024) convida a observar o Carnaval em sua complexidade, sobretudo pela ótica da proposta da intensa convivência com a alteridade que o Carnaval enseja, constituindo uma forma de trazer as tensões que permeiam o cotidiano para o centro do debate.
O que pode uma mulher-onça? A atriz Paolla Oliveira chamou a atenção na avenida por sua fantasia felina, temática explorada pela Escola Grande Rio, baseada no livro “Meu destino é ser onça”, do escritor Alberto Mussa, que versa sobre o mito Tupinambá da criação do mundo. Porém, na verdade, foi o corpo de Paolla que causou celeuma e comentários na imprensa e em redes sociais. Em “O som do rugido dessas ricas criaturas” (OP 469/2024) Juliana Lang Lima, da SBPdePA, problematizou a questão da imposição de padrões estéticos aos corpos femininos. A autora diz: “uma mulher que rompe com padrões carrega sempre algo de assustador”. Fazemos coro aos rugidos e aproveitamos para parabenizar Juliana pelo lançamento de seu novo livro, “Transmissões do Feminino”.
No mês em que ocorreu a condenação, na corte espanhola, do jogador de futebol Daniel Alves pelo crime de estupro, seguido de uma atenuação da pena pela vultosa quantia paga por outro jogador, Neymar, os protestos que ocorreram na Espanha e o pouco eco que o assunto teve no Brasil, nos levam a indagar sobre o silêncio que permeia o campo, inclusive neste fórum, quando o assunto é a violência contra as mulheres. Os altos índices de feminicídio no Brasil apontam para um patriarcado entranhado, que se manifesta em circunstâncias variadas. Mulheres que expõem livremente seus pensamentos, por exemplo, mulheres que “rugem”, não raro costumam ter a sua voz diminuída ou silenciada por interlocutores masculinos.
“De Amélia a Doralice, de Emília a Carolina, e os mistérios de Clarice…”. Fausto Nilo, o poeta e arquiteto homenageado por Silvana Barros, da SPFOR, no ensaio “Essa coisa acesa chamada Carnaval de rua” (OP 466/2024), compôs letras de músicas que embalaram muitos carnavais e momentos de ternura. A música de Fausto e seus projetos urbanísticos, argumenta Silvana, “apontam para a ocupação espontânea das cidades e para o equilíbrio entre ambiente e cultura”. A autora, ao refletir sobre os blocos de rua em Fortaleza, questiona se estes representam um modelo viável e inclusivo de ocupação do espaço público e se conseguirão resistir às padronizações que minimizam a potência dos laços afetivos de Eros na cidade.
Ana Carolina Alcici, da SPRJ, conta a história do Carnaval em Belo Horizonte e suas transformações ao longo do tempo no ensaio “No Carnaval de BH, a vocação pra folia desembarca na estação” (OP 468/2024). Buscando imagens no tear das lembranças da infância, a autora recorda a cidade deserta no período carnavalesco durante a década de 1990. A virada ocorreu a partir de dezembro de 2009, quando um ato de interdito gerou uma reação de ocupação da cidade, surgindo o “Praia da Estação”, bloco que inspirou outros, vivificando o Carnaval de rua de BH. Como Mário de Andrade, Ana Carolina aprendeu a amar o Brasil a partir do universo novo das riquezas culturais, o país furta-cor da Timbalada, de Caetano, do Olodum, do samba, do axé e, em seu caso, do vínculo com a mãe artista, ao prepararem juntas as fantasias carnavalescas.
Se “gente é pra brilhar”, é no frevo dinâmico e multicolorido que o corpos fervem. Em “Notas sobre o Frevo, ritmo dominante do carnaval pernambucano” (OP 473/2024), Carolina Henriques, da SPRPE, retoma a origem do frevo, oriundo da fusão de gêneros diversos, como a polca, a mazurca e o dobrado, bem como as capoeiras, que desempenharam um importante papel no surgimento dos passos típicos da dança, consagrada como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.
Em fevereiro, enquanto recebíamos os textos, a equipe de curadoria também se movimentava na preparação dos roteiros do Mirante, o podcast do OP, e aproveitamos para anunciar que “cidades” e “sonhos” serão temas contemplados nos próximos episódios. Ainda nos “bastidores”, elaboramos a proposta de mesa para o Congresso da Fepal, que acontecerá em outubro, no Rio de Janeiro.
De volta à Fortaleza, Denile Thé, da SPFOR, enredou o Carnaval e o pensamento de Donald Winnicott no ensaio “Por um Carnaval de gestos espontâneos” (OP 472/2024). Lançando perguntas hipotéticas para Winnicott, Denile refletiu sobre as condições do viver criativo, destacando a importância dos gestos espontâneos que ampliam as possibilidades do brincar e do lúdico.
Gladys Franco, da Associação Psicanalítica Uruguaia – APU, discorreu sobre a tradição carnavalesca em seus país, marcada pelos desfiles de blocos e “Llamadas”, com ênfase para as “Murgas”, que exploram temas sociopolíticos com um tom crítico e humorado. “Notas sobre o Carnaval do Uruguai” (OP 467/2024) é um ensaio que destaca, ainda, a murga da APU, que durou alguns anos e foi composta por analistas e analistas em formação, quando na ocasião explicitavam conflitos internos institucionais com humor, respeito e afeto.
“Argentina e o Carnaval do Poder” (OP 471/2024), foi o ensaio de Alícia Killner, da APA – Associação Psicanalítica da Argentina, que fez um retrospecto histórico para expor um deslocamento atual do Carnaval argentino, que não está nas ruas, mas no poder distorcido extremista de Javier Milei, que zomba da fome e da miséria de seu povo.
A Extrema Direita no Brasil realizou, no último domingo de fevereiro, um ato na Avenida Paulista. Em meio às investigações da Polícia Federal sobre o plano de golpe de Estado, a E.D. brasileira segue com a estratégia de apreensão dos símbolos e de corrupção do sentido das palavras, adulterando a realidade. Buscam obliterar a memória, jogá-la em meios turvos, ao proporem, por exemplo, a anistia para os criminosos do dia 08/01/2023.
Falar em anistia no Brasil é relembrar que nosso país não fez nem faz o luto de seus crimes e de seus mortos, não cuida das feridas de seus traumas. As lutas das minorias ainda passam ao largo da responsabilização coletiva. Freud disse em “Recordar, repetir, elaborar” que a repetição ocorre por oposição à rememoração e o passado não rememorado retorna em ato.
“Não há árvores com uma folha a serem vistas… Casas velhas eram simplesmente amontoados de tijolos. Aqui e ali armas disparavam. O fedor era horrível nos lugares e aqui e ali você passava por cavalos e mulas mortos… Em todo lugar a desolação era total.” A citação do psicanalista Wilfred Bion é uma lembrança do que ele experienciou durante a Primeira Guerra Mundial. Suas palavras, no entanto, soam atuais. Em um contexto no qual a guerra na Ucrânia entrou em seu terceiro ano e a guerra Hamas-Israel em Gaza adentrará no quinto mês, as faces do conflito embaralham os tempos, e perguntamo-nos sobre o que escrever diante do que já foi dito. Como parir palavras vivas quando a morte, a mutilação e a fome nos confrontam com cenas dantescas? O que dizer quando a dor retorna cortando os liames entre pessoas, grupos, culturas?
Escrevemos com grãos de esperança de restaurar alguma delicadeza ao olhar o outro, essa incógnita que nos afeta e interpela. Talvez seja preciso considerar que palavras criam fissuras e até funduras, mas que também são elos de ligação e amorosidade. Talvez seja importante reativar o ethos de nossas feridas narcísicas, de nossa condição precária, insuficiente, incompleta, e que por mais que perguntemos não teremos a pergunta absoluta e nem a resposta que fechará totalmente a questão. Talvez as palavras sejam quase nada, um farelo perante a barbárie, ao passo que são as palavras o que temos para fornecer. Como psicanalistas, lidamos com a escuta e a palavra, com dimensões muito particulares do sofrimento humano. Por essa ótica é nosso compromisso ético lutar contra a brutalização da vida e o cerceamento da palavra.
O texto “Razão louca versus Razão sábia” (OP 470/2024), de Valton de Miranda Leitão, da SPFOR, recebeu uma grande quantidade de comentários críticos em nosso grupo de emails. O autor elaborou um ensaio associando contextos históricos e filosóficos na tecitura de seu argumento, demonstrando edificações e rupturas, traçando um esboço da sociocultura humana para evidenciar o combate entre Razão louca e Razão sábia. O texto, ao final, salienta Lula como o líder dessa nova racionalidade sábia e afirma que o exército israelense promove um genocídio na Faixa de Gaza.
Em uma perspectiva contextual dois pontos podem ser destacados: o impacto que reativou feridas, entre os judeus, com a declaração de Lula em Adis Abeba e o ataque das forças israelenses contra civis desarmados, enquanto aguardavam receber socorro alimentar, no último dia de fevereiro, em Gaza. Após esse “dia a mais” do ano bissexto, inúmeras vozes ecoaram, nas quais a palavra genocídio foi utilizada largamente, inclusive por judeus.
Um dos compromissos do Observatório Psicanalítico é dar o direito a voz a quem precisa falar, com a compressão que ninguém é detentor da última palavra. Os atuais acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo têm sido estarrecedores, dolorosos mas também festivos, como no Carnaval que passou. Mas não custa ressaltar que mesmo nas imagens da festa e da dança, existem camadas ocultas que sangram.
O Carnaval também esteve rememorado em nossos #tbts. “Quero de novo cantar” (OP 297/2022), de Helena Cunha Di Ciero, da SBPSP, foi escrito em fevereiro de 2022, durante o período da pandemia. Se a nossa vontade de samba no pé estava confrontada pelas barreiras dos interditos pandêmicos, o sonho de retornar à brincadeira nas ruas, e de viver a soltura alegre da festa mais popular do Brasil estava cintilante nas palavras da autora. Já no ensaio “Por que Carnaval?” (OP 145/2020), Camila Brasiliano, Ludmila Frateschi e Márcio de Assis Roque, todos da SBPSP, desatacam a importância do Carnaval como uma expressão de resistência, de alegria e satisfação pulsional.
O ano de 2024 começou com o anúncio do conflito armado no Equador. Diante da fragilidade das democracias latino-americanas, republicamos o ensaio “América Latina no Observatório Psicanalítico: a Crise da Democracia Ultrapassa as Fronteiras” (OP 207/2020). Nele, Beth Mori e Daniela Boianovsky, ambas da SPBsb, junto a Ludmilla Frateschi, da SBPSP, costuraram um texto que instigou debates acerca do fortalecimento dos governos autoritários em nosso continente. Este ensaio também foi apresentado no 33º Congresso da Psicanálise da FEPAL, que em 2020 acontecia no formato virtual, em consequência da pandemia.
Concluímos o nosso editorial com uma coleta dos acontecimentos que reverberaram no OP. Não termos nenhuma ambição de ter a palavra final, mas temos em nossas mãos os grãos de esperança que eventualmente algumas palavras possam ser uma semente para alguém. Deixamos, por fim, as palavras do poeta Chico Buarque de Holanda, um representante do que essa espécie que cria, sonha, pensa, fantasia, delira, pode fazer com as palavras.
“Palavra boa
Não de fazer literatura, palavra
Mas de habitar
Fundo
O coração do pensamento, palavra.”
Um forte abraço da equipe de curadoria,
Beth Mori (SPBsb), Ana Valeska Maia (SPFOR), Gabriela Seben (SBPdePA), Giuliana Chiapin (SBPdePA), Gizela Turkiewicz (SBPSP), Helena Cunha Di Ciero (SBPSP), Lina Schlachter (SPFOR) e Vanessa Corrêa (SBPSP)
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Imagem: Helena Almeida, “Ouve-me”, 1979. Filme super-8 transferido para vídeo digital, preto e branco, sem som. Registro de trecho na exposição “Helena Almeida: Fotografia Habitada”, no Instituto Moreira Sales, São Paulo, em 2023.
Categoria: Editorial
Palavras-chave: Editorial, Observatório Psicanalítico, Carnaval, cultura, ferida narcísica.
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