
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
A negação do outro: a desumanização palestina como política de Estado.
Avelino Neto – SPBsb
“O sofrimento de um homem nunca é isolado. Onde um ser humano é reduzido à condição de coisa, toda a humanidade está ameaçada.” (Aimé Césaire)
Não há nada — absolutamente nada — que justifique a sistemática tentativa do governo do senhor Benjamin Netanyahu de desumanizar o povo palestino. A frase pode soar categórica, e o é por necessidade ética. Entre as ruínas de Gaza, entre os relatos de fome, sede, medo e exílio, o que emerge não é apenas o rastro de uma política brutal, mas a própria forma moderna da barbárie: a desumanização como ferramenta de dominação.
Tomemos o caso concreto, documentado, de um pai palestino que percorreu 12 quilômetros a pé, sob o sol escaldante, em busca de água e comida para seus filhos. Não é um número ou um símbolo: é um homem. Ele caminha com o corpo ferido e a alma fraturada, acreditando que as doações humanitárias estarão ali, que a fronteira do humano ainda existe em algum lugar. Mas ao chegar, é expulso com violência. Volta sem nada.
O que foi negado a esse homem não é apenas o direito à comida ou à água, mas o reconhecimento de sua humanidade. O gesto de andar — um gesto tão humano e milenar — foi transformado em vão. A distância que percorreu é a mesma que o separa, simbolicamente, da condição de sujeito. Ele voltou como um fantasma: ainda vivo, mas apagado aos olhos do poder.
A desumanização não é um subproduto colateral do conflito, mas sim uma tecnologia política deliberada. Não se trata de exagero retórico, mas de uma constatação histórica. Colocar o outro fora da esfera do humano tem sido, ao longo dos séculos, o expediente mais eficaz para justificar guerras, ocupações, massacres, e o silêncio cúmplice das nações.
Como nos ensinou Hannah Arendt ao analisar os regimes totalitários, a primeira etapa para tornar possível o extermínio é tornar os extermináveis “menos que humanos”. O que acontece hoje com os palestinos — bloqueios sistemáticos, ataques indiscriminados, controle de recursos vitais, assassinatos de civis — só é possível porque foi precedido por um processo lento e insidioso de desumanização.
O conflito israelo-palestino não pode ser lido de forma honesta sem levar em conta as camadas históricas do colonialismo europeu no Oriente Médio, o trauma do Holocausto — que de forma alguma justifica a opressão de outro povo — e a ascensão de uma política de apartheid promovida pelo governo de extrema-direita de Netanyahu.
Não se trata aqui de negar o direito à segurança dos judeus nem a legitimidade histórica do sofrimento de seu povo. Trata-se, justamente, de não permitir que a dor vivida por um grupo se transforme em licença para negar a dor de outro. O sionismo político, em sua vertente radicalizada e militarizada, que se expressa na atual coalizão ultranacionalista israelense, opera numa lógica binária e perversa: ou somos nós, ou eles. E os “eles”, neste caso, são os palestinos reduzidos a ameaça, obstáculo, ruído, ou mesmo “animais humanos” — como já dito por um ministro israelense, em uma das falas mais aterradoras dos últimos anos.
Grande parte do mundo ocidental, sobretudo Europa e Estados Unidos, participa da perpetuação dessa desumanização. Seja pelo financiamento direto de armas e tecnologia militar, seja pela cobertura ideológica que define as vítimas em termos assimétricos — “terroristas” de um lado, “defensores da liberdade” de outro —, o Ocidente legitima um duplo padrão ético.
O corpo do pai palestino que caminhou 12 km carrega consigo também os escombros de uma história ignorada: a Nakba de 1948, a expulsão de mais de 700 mil palestinos, o encarceramento cotidiano, a impossibilidade do retorno. Como escreveu o historiador israelense Ilan Pappé, trata-se de uma limpeza étnica em câmera lenta.
Do ponto de vista antropológico, negar a dor de outro é romper com os fundamentos da experiência humana compartilhada. Claude Lévi-Strauss, em Tristes Trópicos, dizia que o que distingue o humano não é apenas a linguagem ou a cultura, mas a capacidade de simbolizar o sofrimento — o seu e o do outro.
Quando um governo se empenha em apagar essa capacidade, ele atinge não apenas suas vítimas diretas, mas também aqueles que o toleram. Uma sociedade que não reconhece a humanidade em todos os seus membros (e vizinhos) implode eticamente. A desumanização sistemática dos palestinos opera como um espelho invertido, onde a civilização revela seu fundo bárbaro.
Re-humanizar o povo palestino é tarefa urgente e inegociável. Significa dizer os nomes, contar as histórias, mostrar os rostos. Significa romper o silêncio e nomear o crime. O pai que voltou de mãos vazias não fracassou: ele expôs, com seu corpo exausto e desidratado, a falência moral de uma política que se sustenta na negação do outro.
Desumanizar é sempre um ato político. Mas resistir à desumanização também é. E essa resistência começa por reconhecer que nenhuma segurança, nenhuma narrativa histórica, nenhum trauma coletivo, pode justificar a negação do humano.
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Categoria: Política e sociedade
Palavras-chave: desumanização, Palestina, Política de Estado, barbárie, resistência
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