Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Nomear os Pequenos Mortos
Avelino Neto – SPBsb
Há um silêncio que não vem da ausência de som, mas do excesso de horror. É o silêncio que recobre os escombros em Gaza, como um pano sujo que ninguém ousa remover. Lá embaixo, debaixo do concreto e da poeira, estão corpos pequenos demais para serem chamados de inimigos. Crianças.
É difícil escrever sobre isso. Difícil não porque faltem palavras, mas porque as palavras já foram usadas demais — desgastadas, retorcidas, anestesiadas. “Colateral.” “Alvo errado.” “Zona de conflito.” Como se a infância pudesse ser apenas um detalhe geográfico, um acidente da guerra.
Mas não é acidente. É massacre. E é preciso dizer.
A linguagem política, quando perversa, inventa eufemismos para o insuportável. Neutraliza o real. Constrói uma moldura discursiva que permite que se mate sem culpa — e até com legitimidade. Só que o que morre sob bombas não são ideias, são corpos. São histórias que sequer começaram a ser contadas. São pequenas vidas que não terão tempo de errar, de crescer, de sonhar, de amar. Gaza é hoje um imenso cemitério de futuros abortados pela brutalidade do presente.
Não há nada de novo em crianças mortas numa guerra. Essa é talvez a parte mais insuportável da verdade. A história humana está escrita com sangue de gente miúda. Mas cada vez que isso acontece, a alma deveria se partir como se fosse a primeira. Porque é. Cada criança que morre é inédita. Cada nome, um universo encerrado. Cada brinquedo despedaçado, uma janela que se fecha.
As crianças tinham nomes. Tinham manias, apelidos, desejos bobos, cadernos desenhados, medo de escuro, cheiro de sabonete barato. Tinham uma vida toda por fazer — e nem sempre era uma vida promissora, mas era vida. E mesmo a vida mais precária é um milagre. Especialmente quando se tem seis, sete, oito anos.
Na clínica psicanalítica, aprendemos a escutar o que não tem voz — o informe, o traumático, o que ainda não se pôde simbolizar. No entanto, chega um momento em que o silêncio não é mais campo de escuta, mas de cumplicidade. Um silêncio que não preserva, mas apaga. Um silêncio que consente com a barbárie.
O que se destrói, quando se mata uma criança, não é apenas um corpo. É a possibilidade de um mundo que poderia ter sido. E Gaza, hoje, é um lugar onde essas possibilidades são soterradas com regularidade devastadora. O trauma, ali, não é um ponto de ruptura isolado: é o cotidiano. Um cotidiano de sirenes, poeira, amputações, órfãos.
Enquanto isso, o mundo debate. Redige notas. Intercala lamentos e justificativas, acusações e defesas. O horror vira número. As mortes viram parágrafo técnico. A infância vira estatística.
E nós, que assistimos, corremos o risco de virar outra coisa também: espectadores indiferentes. Ou, pior, cúmplices passivos. A anestesia moral talvez seja a mais grave epidemia do nosso tempo.
Há quem diga que isso é política, e que política é complexa. Pode ser. Mas enterrar centenas de crianças não é complexo. É crime. É barbárie. E é covardia. Covardia de quem aperta os gatilhos e de quem olha para o lado, alegando equilíbrio ou neutralidade.
A psicanálise não é uma doutrina moral. Mas ela nos ensinou a reconhecer o horror quando ele se repete com a frieza de uma compulsão de morte. E se alguma coisa ainda nos resta da ética do inconsciente, é o dever de nomear aquilo que os discursos de poder insistem em apagar.
O mínimo que se pode fazer é não desviar o olhar. O mínimo é nomear os pequenos mortos, mesmo quando ninguém mais quer escutá-los.
Eles não eram soldados. Eram meninos e meninas. Tinham mães. Tinham brinquedos. Tinham medo. Tinham sede. E sonhavam.
Que direito temos nós de continuar a sonhar, se não somos capazes de honrar o sonho interrompido dos outros?
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Categoria: Sociedade e Política
Palavras-chave: Infância, Massacre, Silêncio, Psicanálise, Ética
Imagem: Instalação de Bachir Mohammad. Foto AFP.
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