Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Desaprendendo com a experiência
Luiz Meyer – SBPSP
As atrocidades cometidas pelo Estado de Israel em Gaza têm sido objeto de críticas justamente indignadas neste OP.
Gostaria de contextualizá-las tais como as concebo. Elas são fruto de um plano meticuloso que tem se desdobrado ao longo do tempo, composto de vários passos, sendo o atual a sua culminação.
1) O primeiro passo é o descrédito sistemático da Autoridade Palestina e a ocupação da Cisjordânia por tropas israelenses. Estas medidas impedem o surgimento de um grupo político e uma liderança realmente representativa do povo palestino contribuindo portanto, eu diria deliberadamente, para tornar o Hamas e o terrorismo que apregoa e pratica como a voz mais forte de oposição à opressão israelense. Um Hamas assim ativo é mantido, legitimado e fomentado pela política da extrema direita israelense que dele necessita; 2) O segundo passo, possibilitado pela presença das tropas acima mencionadas, é a expulsão dos habitantes autóctones, os palestinos, e a ocupação de suas terras por colonos israelenses que constroem assentamentos e colônias, apoiados e financiados pelo governo israelense. Esta expulsão gradual e contínua dos palestinos os torna mais ainda cidadãos de segunda classe, carentes de direitos e forçados a imigrar, impedindo assim que sua descendência crie raízes na sua própria terra; 3) O terceiro passo, preparado pelos dois anteriores, é o que está ocorrendo atualmente: a limpeza étnica perpetrada seja diretamente através da destruição da infraestrutura de Gaza, seja indiretamente pelo impedimento ou proibição da entrada de insumos básicos à sobrevivência da população.
Um dos aspectos mais surpreendentes desta sequência, guardadas todas as suas diferenças, é seu paralelismo com os passos praticados pelo regime nazista na preparação do holocausto. Inicia-se com o anátema e demonização da “raça”, (durante as campanhas eleitorais de 2015 e 2019 Netanyahu fez seguidas declarações racistas tendo como alvo os árabes de Israel; seu gabinete as repete atualmente). Segue-se com a extinção de direitos civis e políticos; continua-se com a criação de obstáculos ao livre trabalho; desemboca-se em um gradual confinamento, e a criação de campos de extermínio. Hitler, no início da perseguição antissemita, idealizou um plano fantasioso propondo que os judeus fossem deportados para Madagascar.
Hoje, 22/05/25, Netanyahu declarou à imprensa que a guerra só terminará com a saída de toda a população palestina de Gaza. São 2 milhões de pessoas. O todo é acompanhado por uma intensa propaganda visando a obtenção da adesão popular a esta política (é necessário lembrar que a população israelense não se manifesta contra o morticínio; o que faz é pressionar pela liberação dos reféns).
É possível examinar toda esta situação pelo prisma psicanalítico. Podemos lançar mão do que Bion escreveu sobre “Aprender da Experiência” e “Experiência com grupos” e vinculá-lo ao trabalho de Freud “Psicologia de Grupos e Análise do Ego”. Tanto os seguidores do Hamas quanto os cidadãos que apoiam o governo de Israel renunciaram a um ego crítico e o substituíram por um ideal de ego que lhes proporciona identificação e coesão. De um lado a violência terrorista foi “depositada” (e absorvida) no Hamas, e de outro a vingança está personificada nas ações de Netanyahu (olho por olho, dente por dente como rege o velho testamento). Os dois lados se organizaram como um grupo de pressuposto básico de luta-fuga movido pela paranoia. Tudo se passa como se em ambas as partes a função alfa arrefecesse e seu lugar fosse tomado por elementos beta. Como não há tolerância à frustração, não há possibilidade de se aprender com a experiência emocional que se transmuta então em pura ação.
Não creio, entretanto, que a psicanálise nos ajude a compreender os conflitos armados e mesmo a neles intervir. A este respeito sou razoavelmente céptico. Os inúmeros escritos sobre a mente de Hitler pouco ajudam a entender a motivação da Segunda Guerra Mundial. É mais seguro procurá-la na necessidade da Alemanha DE conquistar um “espaço vital” (Lebensraum), de modo a poder contar com um celeiro de grãos e terras com recursos naturais que garantiriam sua segurança e expansão.
A guerra em curso não é movida por ideologias ou tramas psicológicas (mesmo que seja possível, como tentei fazê-lo, identificá-las). Na sua base existe a desmemoria, o esquecimento de Auschwitz, complementada por uma intrincada trama de interesses.
O Oriente Médio, com seu petróleo, seu crescente mercado consumidor, sua capacidade de criar e absorver tecnologia, além de seu potencial para se transformar em um polo turístico (VIDE o “Gaza Resort” by Donald Trump), tornou-se um novo Lebensraum.
Somos todos peões do Grande Capital.
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Categoria: Sociedade e Política
Palavras-chave: Gaza, palestinos, limpeza étnica, lebensraum, desmemória
Imagem: foto de Mohammed Abed / AFP
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