Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Porque devemos falar de Édouard Louis
Silvana Barros – SPFOR
“Mãe, pare, não vou querer saber nada de Édouard Louis. Por que eu deveria?”
Numa conversa acalorada com João, meu filho de 21 anos, logo após a posse de Trump, onde falávamos da violência, quase ditatorial, dos seus primeiros atos como presidente, da radicalização na retórica da extrema direita, com fala discriminatória em relação à igualdade de gênero, raça e comunidade LGBTQIA +, ele afirma que não aguenta essa polarização e questiona se a política, de fato, interfere nas nossas vidas.
Indignada, lhe apresento meu entusiasmo com a leitura dos livros de Édouard Louis, escritor francês, que aos 32 anos é um dos romancistas mais lidos da atualidade, tem seus livros traduzidos para mais de quinze línguas, escreveu sete livros expondo sua própria vida, foi a sensação na Flip de 2024, e declara que todos os seus escritos são políticos e toda a sua vida também.
Eddy Bellegueule, um “trânsfuga de classe”, saiu de casa aos 16 anos, rompeu com seu passado, mudou de nome, tornou-se o universitário Édouard Louis e, aos 22 anos, explode como uma revelação literária. A escrita de si é central nos três romances que Louis publicou desde 2014, e talvez explique a recepção extraordinária que tiveram na França.
Seu primeiro livro – O Fim de Eddy -, onde ele escreve sobre a violência sofrida por ser uma criança gay em uma vila da classe trabalhadora no norte da França tornou-se um bestseller internacional e foi descrito pelo autor como um “romance de não ficção”. Nele, Louis contou a pobreza desoladora que experimentou ao crescer em uma família disfuncional na vila de Hallencourt, a 32 quilômetros de Amiens, região distante do norte pós-industrial de França. Seu desempenho na escola o levou de sua vila natal para um liceu em Amiens, onde trabalhou em um teatro e conheceu sua amiga Elena, que o apresentou à arte, à literatura e aos costumes da classe média. Louis escreve que, como estratégia de sobrevivência, para fugir da humilhação e da violência de um ambiente homofóbico e pobre, pôs em prática um método para se livrar de quaisquer vestígios de sua origem: ele mudou seu sotaque, suas roupas, seu nome e até mesmo seus gestos físicos.
Aos 18 anos, deixa Amiens para a universidade em Paris, abandonando Elena e se unindo ao filósofo e professor universitário Didier Eribon, um antigo associado de Michel Foucault que expõe, em sua obra, a despolitização do mundo que se pretende livre das marcas sociais. Eribon, como Louis, cresceu alienado e gay na classe trabalhadora provinciana. Depois de escutar Eribon dar uma palestra sobre sua infância, Louis se torna seu amigo próximo, o elege como mentor e tem acesso ao meio artístico e à intelectualidade de esquerda radical de Paris.
Dez anos depois, em novembro de 2024, escuto Louis na entrevista do programa Roda Viva da TV Cultura, e fico em estado de epifania com sua descrição da violência que atravessa a vida de pobres, como sua família, “numa corrente elétrica, um ciclo onde não havia violentadores e violentados e sim um fluxo que circulava entre os corpos”. Essa violência, denuncia o “menino adulto” que tinha quase a idade do meu João quando escreveu seu bestseller, “está fora dos indivíduos, é o sistema que a produz”.
Édouard Louis, com seu talento para entrelaçar histórias pessoais e sociais, utiliza a escrita de si como dispositivo para denunciar as múltiplas opressões pelas quais passam grupos sociais devido a aspectos como gênero, raça, classe, sexualidade, e nos permite sentir, através da verdade emocional de sua escrita, a dor da humilhação e da vergonha, tanto pela discriminação de ser quem ele é, quanto pela escassez de oportunidades a que pessoas como ele são submetidas.
Questionado se o que escreve é verdade, Louis defende que só a verdade lhe interessa, e que a verdade emocional é mais importante do que nomes ou fatos. É isso que ele se propôs a encontrar como escritor, embora afirme que é assustador descobrir sobre si mesmo. “Mas é isso que você tem que fazer. Não há escolha.”
“A burguesia ia ao teatro ou a ópera, mas para nós era o supermercado que nos fazia sonhar”, denuncia o escritor em seu livro “Mudar: Método” (2023, Todavia) e fere o ego de uma sociedade que se pretende culta e igualitária. Didier Eribon descreve o fenômeno Louis como “uma bomba literária” que perturbou a burguesia francesa, apontando a marginalização e o preconceito das estruturas sociais que perpetuam a desigualdade.
Édouard Louis traz para a literatura sua história de “trânsfuga de classe”, como fizeram Didier Eribon e Annie Ernaux, mas parece mais ambicioso em seu projeto literário. Ele acusa, escreve os nomes dos políticos que humilharam seu pai, expõe, sem pudor, como pagou o preço material para escapar do destino que a sociedade lhe reservou e como se metamorfoseou para construir uma vida criativa. Tanto ele como sua mãe se tornaram desertores de classe, único caminho possível, segundo o autor, para fugir da violência do seu mundo. No entanto, afirma melancolicamente, mudar de classe nunca é fácil e não garante felicidade, pode te afastar de uma vida autêntica e resultar numa experiência de viver um duplo exílio.
Sabemos que ele não inaugura uma ideia nova, o sociólogo francês Pierre Bourdieu já havia escrito, em 1979, em La distinction, que o gosto e o estilo de vida, aparentemente privados, são profundamente formados pelo ambiente social onde se nasceu, e que o capital social é baseado tanto na sua conta bancária quanto na sua origem cultural e nos contatos parentais.
Mas Édouard Louis, com seu estilo direto e arrebatador, escreve sobre si mesmo, escreve sobre muitos de nós, escreve sobre política e diz que a literatura lhe foi útil para entender sua vida e a de sua família, perdoá-los e vingá-los. “Afio cada uma das minhas frases como se afia a lâmina de uma faca. Porque, sei agora, construíram o que chamam de literatura contra vidas e corpos como o dela. Porque, sei agora, que escrever sobre ela, escrever sobre a sua vida, é escrever contra a literatura”.
Desde então, muitos tem questionado se esse escritor precoce e premiado está realmente qualificado para falar por aqueles que deixou para trás. Alguns não entendem bem ou não se interessam por escrita de si, outros estranham esse tipo de literatura. Há os que não acreditam que um rapaz bonito, alto e educado tenha vivido tais penúrias na França e, portanto, sua escrita não seria autobiográfica. Outros argumentam que o tema da violência social está melhor descrito nos clássicos. Expressões de preconceito e preconcepções acerca do que é literatura?
Louis, que escreve como um manifesto político, afirma que política, para pessoas como ele, não é uma questão estética, e sim a condição de vida ou morte, de liberdade ou submissão. Críticos ligados à esquerda na França apontam que Louis traiu suas origens de classe trabalhadora e que sua nova política reflete apenas as realidades da classe média. Ele, por sua vez, inverte a crítica: “se eu não tivesse deixado Hallencourt, recebido a melhor educação disponível na França e alterado a forma como falava, comia e me vestia, será que os círculos literários franceses teriam expressado empatia por mim? Será que teriam se importado?”
Diante de discursos violentos e retrógrados, escritores como Édouard Louis podem dar voz a muitos jovens que se sentem desconectados das polaridades tradicionais de direita e esquerda, que sentem receio de entrar em contato com hostilidades, e que se alienam. A literatura de Louis pode abrir as portas do mundo, expandir horizontes, ser luz para a construção de identidades mais flexíveis e conscientes das suas raízes, abertas às ambivalências.
Sim, João, temos muitos motivos para querer saber de Édouard Louis.
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Categoria: Cultura
Palavras-chave: Édouard Louis, Escrita de si, violência, preconceito, política
Imagem: capa do livro Método
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