Observatório Psicanalítico – OP 497/2024

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

Sertão do Ceará, 1934 

São Paulo,12 de dezembro de 1982

Rio Grande do Sul, 30 de abril de 2024

Selma T. O. Fernandes Jorge – SBPSP

A chuva cai sobre o telhado trazendo o frescor para a noite quente. O tilintar sobre meu travesseiro faz o repentista ecoar em minha alma. De repente, a lembrança do vestibular para medicina no dia seguinte. Adormeço sobre meu sonho, seria médica e salvaria pessoas em estado de sofrimento físico.

Mas o tempo não é do desejo, o tempo se conjugava na realidade convertida em chamada: – Crianças, acordem! Vamos, vamos! A água está subindo!

O som da voz de minha mãe entra em mim acelerando os ponteiros do meu coração e me dizia que os sonhos precisavam aguardar: – Peguem toalhas, desçam! Continuou minha mãe.

Desço atropeladamente as escadas em caracol e corro em direção a ela. – Todos acordaram? 

Este era o chamado, a Marginal Tietê se confundia com as pistas e bairros adjacentes, mais uma vez transbordava. A água escura e acatingada trazia os resíduos para dentro das casas em velocidade inacreditável. Não somente, entrava pelos poros de todos nós, inundava de tristeza a casa toda. 

Meu irmão mais velho teve um plano: – Vamos sentar todos em frente às portas, não deixaremos a água entrar se ninguém se mexer, a água vai embora! 

Permanecemos estáticos, sentados à porta como soldados impedindo a invasão do intruso. Mas a água criava vida, nos invadia cômodo a cômodo, era fluida e traiçoeira.

– Saiam crianças, ajudem o seu pai a subir os móveis.

Mais uma vez nossa mãe nos acordou do desejo de interromper o ofício da natureza: achar um caminho que não a impeça de exibir sua força. Do outro lado, nós desconhecíamos o nosso, para onde ir?

Meu pai, nordestino, recém chegado em São Paulo nunca viu coisa igual. Embora a força da enxurrada o lembrasse a força da seca, ele sabia que estávamos expostos à ameaça, às perdas e à morte.

“O sertão vai virar mar, dá no coração o medo que algum dia o mar também vire sertão”… as transformações na natureza seguem a natureza do homem. Não haveria lugar a se esconder dela?

~ Pai, você está chorando? Minha pergunta era lamento.

Meu pai estava cabisbaixo, com as calças molhadas e as mãos trêmulas.

Minha mãe o abraçava e dizia que tudo ia passar, não importava mais o sofá novo que estava alí, que agora irremovível parecia zombar do desejo de outrora. Mas minha mãe, mulher forte, de coragem dizia: – tudo vai passar. 

Não havia palavras que o consolasse:

– Vai acabar com tudo que conseguimos! Exclamava ele.

O tudo era um sofá, uma estante de imbuia e móveis de cozinha comprados no antigo Mappin? Não, o tudo era seu orgulho pelo esforço e trabalho. Naquela invasão fluvial, a realização era depositada na plataforma do recomeço, do eterno recomeço. Se não era a seca levando a manada e régua, agora seguia o aguaceiro, a violência da natureza guiada pelas mãos do homem.

Não haveriam projetos no nordeste que precavessem a seca? Não haveriam projetos urbanos que evitassem tragédias? Qual natureza estávamos tendo que lidar, a natureza predatória do humano? 

Lembro de minha avó dizendo: – Haverá um dia que não teremos para onde ir… 

Não a ouvia em tom melancólico, mas realista para aquela que cruzou o país deixando para trás lembranças do açude seco e do gado morto. Suas palavras ecoam em mim: muitos nessa tragédia climática, não tem para onde ir. 

A vida era assim, celebrada pelas mãos amigas, pelos bombeiros que entravam nas casas para levarem todos nós para o outro lado da marginal. Cruzamos a ponte pela madrugada, de mãos dadas fomos até o Brás, bairro de São Paulo que abriga imigrantes nordestinos em sua maioria. Lá aguardamos o dia nascer para decidir para onde ir. 

A recordação me alcança, no meu conforto relativo, pois, em mim, o desassossego me leva a cruzar os Estados, de norte a sul.

O pai Estado, o pai da pólis faltava, retirava o tudo e oferecia os filhos aos filhos: as mãos fraternas que acolhem.

Eventos extremos não podem mais ser tratados como imprevistos. Vários projetos aprovados no congresso são nocivos ao ambiente.

O paralelo com a seca denuncia o paradoxo entre dois estados climáticos que se encontram na insuficiência de atenção às políticas ambientais. Seremos marcados pelo êxodo em busca de qual terra prometida? Onde  haverá acolhimento se a própria mãe natureza sofre com o descaso do pai Estado?

A história oficial das secas escreve uma tragédia, estimativas, de acordo com o historiador Villa (2001), apontam a morte de  aproximadamente três milhões de nordestinos durante 1925 e 1983, decorrente de fome, sede e doenças variadas, correspondente à metade dos judeus mortos na Segunda Guerra Mundial (Tese de Mestrado de Glayce Rocha Santos Coimbra)

Quantas serão as perdas decorrentes do descaso ambiental ocorrido no Rio Grande do Sul cuja história só sinaliza estar no começo? Quantos sonhos a mais serão interrompidos? 

“É devastador”. É assim que a ambientalista Natalie Unterstell descreve como se sente desde que ficou claro que as inundações no Rio Grande do Sul atingiram níveis trágicos. As chuvas intensas afetam mais de 1,4 milhão de pessoas no Estado. Desde que a situação no Sul do país passou a chamar atenção do Brasil e do mundo, ambientalistas vêm associando a tragédia às mudanças climáticas. 

Mas Unterstell tem um motivo a mais para se lamentar:  de 2013 a 2015, ela participou de um programa encomendado pelo governo federal, então governo Dilma Rousseff (2010-2016), com objetivo de projetar os impactos das mudanças climáticas no Brasil até 2040 e desenhar medidas de adaptação a elas. O programa “Brasil 2040” custou, à época, R$ 3,5 milhões. Os modelos matemáticos usados pelo estudo projetaram um cenário climático muito semelhante ao que se vê no Brasil quase 10 anos depois: escassez de chuvas na região Norte e chuvas acima do normal no Sul do país. Apesar disso, o programa foi abruptamente encerrado em 2015. Era, segundo Unterstell, algo como o embrião de uma política pública para a adaptação climática do país. De acordo com especialistas, apesar de o Brasil contar com um Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima desde 2016, o documento nunca teria saído do papel (https://www.bbc.com/portuguese/articles/c90zxeqj342o). 

Mas algumas mãos fraternas não se cansam de oferecer apoio e esperança: em seus 59 anos de vida, o gaúcho Ivan Brizola nunca aprendeu a nadar. Mas quando fortes enchentes atingiram o Rio Grande do Sul neste mês, ele pediu emprestado um caiaque – que também nunca tinha usado – e saiu resgatando pessoas em meio à inundação.

Brizola contou à BBC News Brasil que já estava preocupado logo no início das chuvas. Morador da capital gaúcha, ele ouviu de amigos que trabalham com segurança alertas de que o risco era iminente e sentiu que precisava fazer alguma coisa.

Começou ligando para amigos e parentes avisando sobre os perigos que todos iam enfrentar. Quando o “caos se instalou” e a “água começou a tomar conta dos bairros”, ele pediu o caiaque do dono da barraquinha de peixe da feira em frente à sua casa e foi de carro até Canoas, cidade que tinha sido fortemente atingida. Sua própria casa, em Porto Alegre, não tinha sido afetada. Sem roupas ou nenhum equipamento de resgate além do caiaque, ele foi aprendendo a manusear a embarcação já no meio da inundação. (https://www.bbc.com/portuguese/articles/c90zxeqj342o)

O rio é democrático, entra em todas casas, pobres ou ricas. A morte e vida em João Cabral torna todos nós retirantes nesse momento. A fome e a sede se instalam diante da aridez do cenário político. Crianças são levadas mortas nas barcas de bombeiros – Portinari pintaria embarcações ao invés de redes. 

Não falo de política partidária, mas de empenho para custear ações que não retornam com selos de eficiência, mas de respeito ao mundo que habitamos e no qual somos apenas moradores passageiros. 

Sá e Guarabyra finalizam essa memória do futuro:

“O homem chega, já desfaz a natureza

Tira gente, põe represa, diz que tudo vai mudar

O São Francisco lá pra cima da Bahia

Diz que dia menos dia vai subir bem devagar

E passo a passo vai cumprindo a profecia do beato que dizia que o Sertão ia alagar

O sertão vai virar mar, dá no coração

O medo que algum dia o mar também vire sertão

Adeus Remanso, Casa Nova, Sento-Sé

Adeus Pilão Arcado vem o rio te engolir

Debaixo d’água lá se vai a vida inteira

Por cima da cachoeira o gaiola vai subir

Vai ter barragem no salto do Sobradinho

E o povo vai-se embora com medo de se afogar.

Remanso, Casa Nova, Sento-Sé

Pilão Arcado, Sobradinho

Adeus, Adeus” 

(https://youtu.be/EjVbTP7v9nY?si=D996N2KMdQ9FRHFo)

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

Categoria: Política e Sociedade 

Palavras-chave: Catástrofes ambientais, Inundação, Políticas ambientais, Seca, Transformações

Imagem: Sebastião Salgado, fotógrafo, ambientalista de corpo e alma, em seu último livro também exibido na exposição que leva o seu nome, Amazônia, faz uma alerta: “Desejo que em 50 anos este não seja o registro de um mundo perdido.” https://casacor.abril.com.br/arte/exposicao-de-sebastiao-salgado-leva-a-amazonia-ao-redor-do-mundo/

Cliquem no link abaixo para debater o assunto com os leitores da nossa página no Facebook:

https://www.facebook.com/share/p/JpMp2uXgJAuPJqZx/?mibextid=WC7FNe

E sigam nossa página no Instagram @observatorio_psicanalitico

Tags: Catástrofes ambientais | Inundação | Políticas ambientais | Seca | Transformações
Share This