Observatório Psicanalítico OP 496/2024 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

A escuta psicanalítica como abrigo 

Giuliana Chiapin – SBPdePA

Nesta última semana, que parece uma eternidade, a palavra ABRIGAR tem sido uma constante na minha cabeça. Abrigar nunca fez tanto sentido nos mais diferentes sentidos. Abrigos abrem diariamente para receber os desabrigados, são dezenas de milhares. O desespero e o desamparo são  expostos a céu aberto. 

Por outro lado, e ao mesmo tempo, quanto mais a água sobe, inunda e destrói, mais observamos uma correnteza de solidariedade, de rápida ação, das mais diversas frentes e formas. É indescritível e incontável. Do proprietário do jet sky aos voluntários das cozinhas solidárias. Da criança que separa seus brinquedos para doar ao adulto que mobiliza sua rede para arrecadar colchões. 

Seguir no consultório ou ir para as ruas? Atender um ou auxiliar a multidão? Para que lado ir diante de tantas faltas e necessidades? Como, de fato, é possível contribuir? Pix, pessoalmente, arrecadando coisas, distribuindo coisas, acompanhando pessoas, produzindo material, atendendo nas redes de atendimento gratuito? Qual nosso lugar em tudo isso? 

Ao chegar no abrigo à noite, a primeira sensação foi: vou cancelar a agenda e vou ficar por aqui nos próximos dias, é urgência e emergência, agora é trabalho em massa, são muitas pessoas desabrigadas, são muitas pessoas sofrendo, são muitas demandas. Aos poucos fui entendendo que, para aquele monte de demandas, havia também um monte de pessoas. 

A rede de solidariedade é impactante. Havia quem acolhia os desabrigados na entrada, quem separava os itens de higiene, quem organizava roupas e sapatos, quem arrumava as camas, quem abraçava e passeava com os cachorros, quem cuidava dos remédios, quem direcionava os banhos, quem recebia as doações, quem brincava com as crianças…ah quem brincava com as crianças! 

Em meio ao caos, o canto das crianças era de esperança: jogos, massinhas, brinquedos, a alegria da sandália nova, a felicidade de vir mostrar as unhas recém-pintadas de azul com glitter, outras crianças para brincar. Por instantes, nesse canto, parecia que nada lá fora estava acontecendo, nem ali dentro ao lado: um ginásio cheio de colchões e cadeiras e pessoas sentadas ou deitadas ainda tentando entender o que estava acontecendo. Algumas olhando para o além, outras nervosas, outras precisando de coisas, outras necessitando atendimento médico, tantas outras com tantas outras demandas…tudo havia sido perdido: a casa, o bairro, a comunidade, o pet. Para outros, a perda era tudo isso e ainda entes queridos. 

De identificação, uma fita crepe rasgada à mão, colada no peito com nossos nomes. No meu caso, uma outra abaixo escrita “psico”, entregue pela adolescente dedicada da entrada. Rapidamente nos encontrávamos e nos uníamos como se fôssemos uma equipe que há anos trabalha junto. A necessidade tem pressa e a urgência dispensa apresentações. Havia um senso de parceria e apoio só pelo fato de estarmos ali. Um mágico senso de colaboração. A urgência exige seriedade e cuidado, mas não tem tempo para milindres. Ah se funcionássemos assim nas horas vagas às catástrofes… 

Conversas leves de aproximação, escutas importantes, observações, avaliações de risco… De repente uma aluna de psicologia para ao meu lado e diz: “eu não sei o que fazer! Aquele senhor me perguntou o que vai acontecer, quando ele vai para casa, mas ele me disse que não tem mais casa. Eu não sei o que dizer. O que a gente diz numa hora destas? O que que eu digo?” Os olhos tristes e assustados eram a denúncia da realidade. 

Nesse instante, fui tomada por uma interessante paz de compreensão da força do nosso trabalho. Eu queria poder dizer muitas coisas para ela, mas só saiu: “só escuta, tua escuta já é muito e é a garantia do que ele pode ter agora.”

Me vi nela há mais de 20 anos sem entender muito bem como afinal esse negócio funciona, e simultaneamente me vi no presente com a certeza da potência da psicanálise. Esse “só” continha tanto. Essa garantia do que ele pode ter agora, nesse instante, era certeza. 

Novo dia, consultório, a cada escuta, a cada sessão, ficava mais evidente que seria impossível cancelar agenda. Seria impossível e injusto. Abrigos e as demais formas de auxilio serão encaixados em outros horários. 

No prédio alternava energia elétrica e água já faltava no bairro. A rua lá embaixo era deserta. Os helicópteros (tão incomuns aqui) passando todo tempo, invadindo a sessão e lembrando a catástrofe. Som que trazia tensão e alívio. Mais um resgatado, era melhor pensar, em meio a escuta dos pacientes. Sensação muito estranha que remete aos textos dos precursores da psicanálise atendendo em tempos de guerra: Freud, Winnicott, Klein se faziam presente. Ao mesmo tempo que eu tentava entender o que estava sendo dito ali, no presente, entendia um pouco a sensação deles em Londres do passado. 

Uma mistura de guerra, pandemia e algo inédito e ainda incompreensível. Abrigar. Por antes e por agora. Sessões preciosas (qual não é?!) para desaguar aquilo que inunda. Estamos concretamente sofrendo por essa quantidade de água que não deságua, que transborda, invade, inunda, rompe, que deixa ilhado, sem acesso e por vezes mata.(As causas são inúmeras e é urgente e necessário que se olhe para isso) 

Psicanálise é trabalho oposto a isso.

Escuta é abrigo. Este que estamos vivenciando aqui no Rio Grande do Sul. Gigante! Que é no encontro. Que é humano, muito humano. Do desamparo à potência das possibilidades e recursos. Do (in)acessível aos caminhos. Que é criação. E que mesmo diante da dor,  sofrimento, perdas, dificuldades, é vida, mesmo quando parece que resta tão pouco. 

Psicanálise que é nas salas de análise e/ou onde as pessoas estão e precisam. 

Psicanálise que pode ser chão, teto, janelas e portas para o mundo lá fora mesmo que isso seja difícil de explicar com palavras. 

Ironicamente, teto virou chão por aqui. Nas telhas que muitos se sentaram até serem salvos. 

(Dentre tantas) A imagem de hoje foi do cavalo que, com todo seu tamanho, teve a capacidade de se equilibrar na ponta de um telhado para sobreviver. Imagem que representa tanto, tanta gente, assim como remete àqueles que não conseguiram. Imagem que nos deixa atentos refletindo como e por quanto tempo essa rede e os serviços aguentarão e como serão as próximas semanas tanto nos abrigos como fora deles…sabendo que esta “tormenta” será longa. Imagem que nos lembra tanta desigualdade e a diferença social que vivemos onde uns são inundados de recursos e possibilidades e outros sobrevivem espremidos na miséria. Imagem que joga na cara o que nós humanos estamos fazendo com a natureza. E as consequências do que acontece com a gente quando a natureza, que somos nós, não está bem. 

Imagem que, para além desta situação, faz pensar na forma como muitos chegam aos nossos consultórios…e nas possibilidades de “resgates”, seja o que isso significa para cada um…

E numa perspectiva de planeta, imagem que me/nos exige perguntar: por quanto tempo teremos abrigo?

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

Categoria: Política e Sociedade 

Palavras chave: abrigar, escuta, psicanálise, resgate, encontro

Imagem: Cavalo é visto sobre telhado em área alagada em Canoas (RS) — Foto: GloboNews/Reprodução

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Tags: abrigar | encontro | Escuta | Psicanálise | resgate
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