Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Liberdade e Democracia: A inquietante luta na Psicanálise e na Vida
Graziella Comelli da Silveira – SBPdePA
Inquietações convidam-me a pensar sobre os processos de construção da democracia e da liberdade, lutas que entendo como humanitárias, sobretudo. Tais lutas começam no grande e inquietante desafio que é tornar-se gente na vida e no mundo, e neste escrito, conversam com a escolha de tornar-se uma analista.
Faço um enlace com a dimensão da luta histórica pela conquista de Direitos Humanos, e sua eterna busca por assegurar a proteção do sujeito e suas liberdades dos abusos cometidos pelo Estado. Tal conquista só pode se dar diante da consolidação da Democracia nos Estados. Diante de tratados e acordos firmados, esses direitos, reconhecidos pelas Constituições passam a ser considerados garantias fundamentais. Entretanto, sabemos que esses direitos não estão dados na sociedade e nas instituições, precisam ser conquistados, historicamente, através de lutas reais e simbólicas.
Seguindo o fio das inquietações, chego nas minhas, estou falando do lugar de uma mulher cisgênero, com trinta anos, branca, classe média, heterossexual, finalizando seu primeiro ano em uma formação analítica no sul do Brasil, filiada a IPA. A Psicanálise que conheço, a partir de minhas vivências, acontece na América Latina, e sua história no Brasil está profundamente ligada ao tema da democracia e da liberdade.
Na trilha de caminhos possíveis rumo a liberdade e a democracia, observo e escuto histórias de mulheres, analisandos, analistas e movimentos sociais que tem como parte fundamental de suas lutas diárias o caminhar pela cidade em que vivem. Entendo que esse gesto não é tão simples quanto pode parecer, trata-se de ocupar, dar corpo, movimento e voz às andanças pelo mundo. A sabedoria contida no ditado popular que diz: o caminho se faz andando, pode ajudar a pensar a importância desse caminhar, principalmente para sujeitos que têm suas existências constantemente violentadas, marginalizadas e vulnerabilizadas no laço social.
Lauren Elkin (2016), propõe a ideia de Flâneuse para pensar as mulheres que caminham nas cidades, uma definição imaginária, forma feminina de Flanêur, uma ociosa, uma observadora errante, normalmente encontrada em cidades. A autora trabalha a perspectiva de que um espaço que ocupamos, em uma cidade, não é neutro. Esse espaço é constantemente refeito e desfeito, construído e imaginado, por seus habitantes. Entende que uma cidade é feita de fronteiras invisíveis que demarcam quem vai para onde e determinam nossa circulação nos espaços. Diante disso, faz uma provocação: com a tomada de consciência sobre a existência dessas fronteiras invisíveis, é possível desafiá-las, é preciso reivindicar pelo direito de perturbar a paz, de observar (ou não observar), de ocupar (ou não ocupar) e de organizar (ou desorganizar) o espaço conforme nossos termos.
Falar do tema da liberdade e da democracia requer, também, uma boa dose de coragem, encontro e reencontro, esperança e inspiração na música popular brasileira. Em 2021, quando nos faltava o ar, e circular pela cidade era assustador, encontrei a biografia de Ney Matogrosso, escrita por Julio Maria. Ler essa história me salvou um pouco, e acredito que não só a mim. Ney nunca quis ser um representante de seus potenciais iguais, muitas vezes tentaram apontá-lo como “o gay do Brasil”. Sua luta sempre foi por justiça social e uma liberdade incondicional de todas as ideias humanistas. Entendia a importância do que havia feito quando era procurado por homens e mulheres de todas as orientações sexuais que vinham lhe agradecer por inspirá-los a se revelarem para o mundo como seus corações pediam que fossem. Essas histórias o fortaleceram para que trilhasse um caminho, mesmo que vivesse em um mundo de prisões e torturas. Para encerrar essa emocionante biografia, Julio conta uma cena recente de Ney no seu sítio, e finaliza de forma poética: “… era preciso estar no lugar e na hora certa, quando o sol não queimasse mais, as árvores silenciassem e os vivos e os mortos, o fantástico e o real, as memórias e o presente, o silêncio e as canções e os humanos, os animais, e todas as formas de amor se libertassem do medo para habitarem o único lugar onde tudo poderia se misturar. Um lugar chamado fronteira.” (pg. 452)
Considero importante trazer referências que estão fora do corpo teórico da Psicanálise para pensá-la além muros, e aproximá-la da vida das pessoas, da cidade e do mundo. Entendo que seus principais conceitos só puderam nascer a partir dessas andanças inquietas de analistas que estavam escutando sujeitos em seus consultórios, mas também estavam em um espaço não neutro no mundo. E tal luta por democracia e liberdade só é possível nessa fronteira, entre o singular e o coletivo. Pensar a fronteira como lugar fértil para que o novo possa surgir e o inquietante se manifestar me parece um horizonte viável, no sentido da resistência da Psicanálise, assim como de sua renovação.
A fronteira, esse espaço tão controverso, historicamente marcado como terreno de grandes disputas e confrontos por demarcações e afirmações de um povo, de uma cultura, de um lugar para viver, ocupar e trabalhar. Na psicopatologia, é um termo comumente usado para falar de sofrimentos que transitam, se aproximam e se afastam em diferentes zonas do aparelho psíquico, resultando em estados “fronteiriços”. Algo que ainda não se deu, não está constituído, encontra-se aberto, com falhas importantes, algumas marcas que tentaram se acomodar, mas não puderam, seguem inquietas, fazendo barulho, causando dor.
E quem de nós não é feito de fronteiras? Algumas mais pacificadas, outras nem tanto, vamos tentando entender esses espaços, seus trânsitos, apostando em caminhos e caminhadas possíveis. Geralmente, é nas fronteiras que nascem novas linguagens, misturam-se idiomas, culturas, e desse encontro inusitado revelam-se palavras, expressões e sotaques diferentes. Outros jeitos de tentar expressar o que se sente e pensa, em um mundo que está em constante mudança. Sinto, desse lugar que ocupo, a necessidade de um resgate profundo do reconhecimento da diferença, o que podemos chamar de alteridade em Psicanálise. Sem essa dimensão como horizonte, penso que não há Psicanálise possível, muito menos qualquer tentativa de consolidação democrática nas instituições que a exercem.
Escolho trazer a pintura “God save America”, 2004, do artista plástico uruguaio José Gamarra, que tive o prazer de conhecer na exposição Antologia, na Fundação Iberê Camargo em Porto Alegre. Em uma entrevista, concedida a Heber Perdigón, em 2022, diz Gamarra: “Eu estava ciente da situação na América Latina. Toda complexidade política da época, que ainda existe, me fez refletir muito. Tudo isso me levou a observar diferentes situações: a guerra, a invasão, a produção, as armas. Olhando as telas, traçava a história. As pinturas explicam situações.”. (Perdigón, 2023)
Referências:
Elkin, L. (2016). Flâneuse: mulheres que caminham pela cidade em Paris, Nova York, Tóquio, Veneza e Londres. São Paulo: Fósforo, 2022.
Maria, J. (2021). Ney Matogrosso: A biografia. São Paulo: Companhia das Letras.
Perdigón, H. (2023). Entrevista de Heber Perdigón com José Gamarra. Em Aguerre, E.; Possamai, G. & Perdigón, H. (Orgs.), José Gamarra: antologia. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Política e Sociedade
Palavras chave: democracia, liberdade, alteridade
Imagem: Foto pessoal da autora do livro: José Gamarra: antologia/ organização Enrique Aguerre, Gustavo Possamai, Heber Perdigón; entrevista de Heber Perdigón com José Gamarra. – Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2023.
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