Observatório Psicanalítico OP 490/2024  


Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
 
Contracapas: o avesso do cuidado

Flavio Gosling (SBPSP)

Não acredito que possa existir um psicanalista totalmente insensível às artes. A música, o cinema, as artes plásticas e a literatura são fontes nutricionais para quem se aventura a acompanhar pessoas por intermédio da escuta do inconsciente. Sem a cultura somos incapazes de fazer associações: os sonhos ou o pensamento acerca das emoções ficam totalmente bloqueados. 

Desde pequeno sou apaixonado por filmes em preto e branco. Tenho uma obsessão pela estética do filme noir. Na adolescência, uma das minhas maiores preocupações era gravar, em fitas cassetes, filmes que passavam em um programa de televisão chamado “Corujão”. Isso era década de 90. Atualmente, vivemos a maravilha dos serviços de streamings e da internet, com os filmes muito mais à mão. Ainda assim, confesso sentir uma certa nostalgia da época. 

Recordo de um dia ter gravado e assistido ao filme “O sol é para todos”, com o ator Gregory Peck. Se tem alguém do mundo artístico que admiro é Gregory Peck. Ele é de uma “chiqueza” sem fim: sua filmografia, a forma com que lidou com o trabalho e a velhice me permitem, hoje, admirá-lo pela trajetória.

Em “O sol é para todos”, Peck interpreta um advogado que defende um negro acusado injustamente de um crime, chegando a receber um Oscar por sua atuação. Na época em que assisti ao filme, lembro de ter ficado tão animado com a personagem que cogitei até ser advogado. O filme aborda questões relativas ao preconceito e ao racismo e foi produzido na década de 60, quando os debates em torno dessas temáticas fervilhavam nos EUA. Surgiam lideranças importantes para os movimentos antirracistas, a problemática da Klu Kux Khan estava posta e por aí vai. Algo surpreendente e peculiar: o filme é baseado na obra da escritora Harper Lee, uma mulher branca, nascida em 1926. No livro, ela conta eventos que presenciava e a indignavam durante sua infância. Em 1961, Lee, então com apenas 35 anos, ganhou o prêmio Pulitzer pela obra. “O Sol é para todos” é um clássico inquestionável da literatura e do cinema. 

Em 2022, sessenta anos depois, uma senhora residente no estado da Virgínia, Estados Unidos, soube que esse livro fora indicado pela escola do seu filho como sugestão de literatura. Ela buscou uma representação judicial a fim de impedir que a obra fosse oferecida aos jovens. Achou que o filho ficaria perturbado com algumas das expressões usadas no livro. Segundo ela, o texto continha palavras de baixo calão e ofenderia os negros. Surpreendentemente, seu pedido foi deferido, e o caso foi amplamente noticiado. 

Recentemente, aqui no Brasil, seguindo a mesma linha do caso americano, alguns educadores, pais e políticos fizeram uma mobilização para impedir a indicação do livro “O avesso da pele”, de Jeferson Tenório, como leitura nas escolas. O livro aborda o tema do racismo no país. Para o pedido de veto, esse grupo alega que o livro apresenta palavras de baixo calão, é vulgar e tem conteúdo pornográfico.

A Psicanálise nos traz ferramentas para uma série de tratados e leituras acerca dessas ocorrências. Seria até difícil escolher um tema único para analisar: repressão, perversões, negações, falsos moralismos, inveja e tantos outros. Mas escolherei aqui um ângulo elementar, baseado no que vivo na clínica.

Como psicanalista, atendo pessoas em diferentes momentos da vida e, dentre elas, adolescentes. Passo muitas horas da minha semana tentando ajudá-los a pensar em como lidar melhor, em um mundo enlouquecido, com a enxurrada de transformações que atravessam. Não tenho nenhuma monotonia nessa clínica. Aliás, é bem o contrário: sinto estar constantemente numa montanha russa.

Por vezes fico arrepiado e muito preocupado com os riscos: acompanho as idas às festas e o contato deles com drogas, assisto a jovens que insistem em destruir seus pulmões com cigarros eletrônicos, eles me contam como dançam até o chão em baladas regadas a funk e gravam cenas de sexo no celular sob o risco de as imagens serem publicizadas. E tudo isso independe do nível social do adolescente. Trabalho com jovens buscando imaginar seus sonhos e uma profissão na vida futura. Muitos me confidenciam que querem mesmo é montar um “onlyfans” e ganhar dinheiro mais agilmente, expondo seus corpos. Nos bastidores, os pais imaginam que eles desejam as carreiras de médicos, engenheiros ou juízes.

Não sei se os adolescentes que atendo vêm de Marte, mas não consigo imaginar nenhum deles chocado ou abalado com conteúdo de “O sol é para todos”, tampouco com algumas das coisas que Jeferson Tenório escreveu em “O avesso da pele”, além das temáticas do preconceito e do racismo. Honestamente, pela minha experiência clínica, não acho que essa atitude dos pais que pedem a proibição do uso do livro comova os adolescentes. Eu intuo que os constrangeria. Eu me imagino ouvindo de um adolescente que sentiria vergonha ao saber que seu pai, sua mãe ou educadores fariam alguma mobilização para evitar algum livro de conteúdo que discute o racismo. 

Na clínica analítica, as preocupações são de outra natureza, muito mais graves. Fazemos enormes esforços para ampliar as possibilidades de um adolescente identificar e pensar suas emoções, em um mundo de idealizações e esburacamentos. Como todo psicanalista sabe, o traumático está sempre incidido e, sem possibilidade de elaboração mental e emocional, não há digestão daquilo que sentimos. Perante angústias não metabolizadas, há maiores chances de o adolescente atuar concretamente. Entram aí o uso de substância, a automutilação, as tentativas de suicídio e os atos delinquenciais, para citar apenas algumas das ocorrências mais comuns entre os jovens.

As situações sociais, hoje, deixam a coisa ainda mais complexa, piorando a angústia: a violência está encostada na vida do adolescente, a rapidez e o volume das informações são intoxicantes, os jovens vivem um contexto de superficialidade nas relações. Eles vivem essa vida “louca vida”, ao mesmo tempo em que se queixam de um profundo vazio. Vivem uma Disneylândia repleta de informações e imagens, mas a sensação que impera é o tédio. Não conseguem pensar a frustração, a decepção, nem naquilo que os traumatiza ou que os afeta. Escuto diariamente que querem morrer, desejam cortar suas peles como estratégia para aliviar ou neutralizar a tristeza que sentem. Revelam, nos consultórios, que não enxergam sentido algum na vida, ainda que muitos estejam sendo super bem cuidados: assisto a pais verdadeiramente empenhados para a felicidade dos filhos, querendo oferecer melhor educação, lazer e os celulares mais atuais. Através deles, os jovens acessam a internet, podem entrar em contato com o mundo todo através dela e, mesmo assim, se sentem ocos e entediados. Isso me comove diariamente.

Por vezes me pego surpreso com a incapacidade de alguns educadores e pais de reconhecerem o nível de complexidade que o adolescente vive. Fico intrigadíssimo para entender como encontram energia e tempo para acharem argumentos que impeçam a leitura de obras como “O sol é para todos” e “O avesso da pele”. A situação que vivo na clínica é muito mais extrema. Particularmente, eu levantaria minha mão aos céus se, por algumas horas, algum adolescente entre os que atendo parasse de mexer um pouco no celular ou de pensar em se cortar, e lesse uma dessas obras. E penso na riqueza que seria se pudéssemos pensar juntos a respeito delas. Nos consultórios, confessam que não tem paciência para ler nada e acessam, com custo, os resumos na internet. Tomam quilos de medicação estimulante para sintonizarem com alguma aula ou tolerarem a leitura de um único parágrafo nas questões da prova.

O desejável não seria justamente o contrário? Que estimulássemos a leitura, para que os jovens vissem os livros como uma atividade rica e interessante? Obras literárias permitem que sintamos algo diferente, e podem ser excelentes combustíveis tanto para as próprias emoções quanto para suscitar discussões com pais e professores sobre o seu conteúdo, ainda que erótico.

Talvez a Psicanálise tenha muito mais para desenvolver no sentido de dialogar melhor com os pais e educadores. Penso que o discurso analítico ainda fique muito racionalizando e não revela o óbvio aos responsáveis de adolescentes, apontando para a simplicidade e a falta de percepção da realidade que estão vivendo. Nas redes sociais, assisto a inúmeras publicações sobre como os adolescentes precisam de limites, e é claro que precisam, isso é evidente. Mas precisam também de continência, de contornos emocionas, de diálogo e suporte de um adulto que consiga fazer discriminações.

Winnicott é um dos psicanalistas que mais fala da influência ambiental para o desenvolvimento de alguém. Precisamos, diz ele, ter uma mãe que seja suficientemente boa. Claro que é uma metáfora da função materna, que pode ser exercida pela mãe, mas por tantas outras pessoas. O cuidado, portanto, precisa ser suficientemente bom. E isso quer dizer que esse cuidado precisa ser na medida, nem demais, nem de menos. No trato com os adolescentes, o que vemos, infelizmente, é uma explosão de faltas e excessos.

Este tipo de proibição de livros, como está sendo feita, revela pouca percepção do que os adolescentes vivem, além de uma superproteção com máscara de cuidado adequado. E os jovens percebem e sabem bem disto. Sabemos que é uma ação cujo cerne atravessa a polarização de ideologias políticas e preocupações pertencentes ao “mundo dos adultos”.

Os grupos que apoiam esse tipo de veto parecem caminhar no sentido da infantilização do jovem e da instauração da alienação, mascarados por um discurso de moralidade ideológica. Revelam pouca sensibilidade à realidade ou uma preocupação legítima com o adolescente ou com aquilo que ele possa vir a suportar ou fantasiar. Penso que a Psicanálise possa ajudar educadores e famílias a pensarem no significado da expressão “cuidar”. Há estilos de repressão e censura que podem ser devastadores –, e sabemos muito bem disto pela Psicanálise.

Garanto a vocês: não foi Hilda Hilst, Nelson Rodrigues, Bette Davis em “A Malvada” ou Gregory Peck que me traumatizaram ou bloquearam minhas emoções. Mas sim o preconceito, a exclusão, a censura e a pouca escuta. Isso sim gera dor e nos faz procurar o divã. Pelo contrário, os livros e filmes me ajudaram, e me ajudam. Ouso dizer que me salvaram e me trouxeram esperança durante minha adolescência.

A arte ampliou minha visão de mundo, me permitiu entrar em contato com meu preconceito, me ajudou a diferenciar o que é erótico do que é pornográfico e muito mais. Em minha trajetória, tive a sorte de poder contar com pessoas em que pude confiar e com quem conversar, me ajudando a entender melhor aquilo que lia.

Criar um clima de confiança entre escola, família e adolescente poderia ser uma saída muito melhor do que as proibições judiciais no modelo de “censura”. Se professores e pais ficam agredidos com o que está escrito em um livro indicado, essa seria uma ótima oportunidade para discutirem coletivamente esses incômodos. Qualquer decisão sobre os livros a serem oferecidos na escola não deveria se dar por meio de um ato espetaculoso com intenções secundárias, mas sim mediante um processo de construção coletiva. Principalmente na escola pública, onde iniciou esta discussão. É desejável que tenhamos educadores preparados para discutirem o mundo com seus alunos e que consigam ajudá-los a diferenciar uma expressão artística erótica de uma conversa regada com palavras chulas, potencialmente ofensiva.

Impedir literatura e queimar livros, a história já mostrou muito bem que não adianta. A própria Psicanálise sofreu diretamente com isto. Já tentaram nos chamar de charlatões e imorais, e nazistas botaram fogo em livros psicanalíticos na tentativa de impedir a Psicanálise de avançar. Felizmente ela resiste.

Parafraseando Caetano Veloso, em Sampa e aproveitando a palavra do título do livro de Jeferson Tenório, é o avesso do avesso do avesso do avesso.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Cultura; Política e Sociedade
 
Palavras-chave: Literatura, Escola, Censura, Racismo, Adolescência

Imagem: Gregory Peck e Mary Badham em cena de “O Sol é para todos” (To Kill a Mockingbird) de 1962

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Tags: adolescência | censura | Escola | Literatura | Racismo
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