Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Tânatopolítica ou Matança Autorizada
Valton de Miranda Leitão – SPFOR
Há muitas teorias sobre o retorno da sociedade humana à condição de vida nua. Aristóteles já afirmara que o objetivo da polis é passar da Zoe ou vida animal para a de Zoon Politikon ou vida qualificada na polis. Freud, em Totem e Tabu, traz o modelo da horda primeva, na qual o macho poderoso detinha o poder e a posse de todas as fêmeas. A autoridade que perpassa os grupos humanos, tanto na realeza quanto na família, estudada por Freud em Psicologia de Grupo e Análise do Ego, apresenta-se na tirania como poder soberano. Assim, o absolutismo está na origem do mito da horda primitiva.
A condição de autoridade absoluta foi rompida quando os filhos rebelados mataram o pai poderoso, comeram sua carne e beberam o seu sangue. Dessa forma criminosa e parricida começa a caminhada civilizatória. Porém, o pai que odiavam era o mesmo que amavam e, portanto, daí em diante surge o remorso a lei que regulamenta o acesso as fêmeas, proibindo o intercurso sexual com as do mesmo totem. Nessa construção mítica freudiana encontra-se a origem da religião e do totemismo, da exogamia e da culpa. O animal ou planta totêmicos sofrerão o interdito que será a base do Direito.
O animal totêmico representante do pai não deve ser morto, sua carne não deve ser ingerida e o sangue ou suco de planta na mesma condição, não devem ser bebidos. O Direito, portanto, nasce da violência que sempre volta como retorno do recalcado ou exceção dentro da prescrição legal. A extensão com que a humanidade volta à vida nua pode ser encontrada nos campos de extermínio do Ceará no século 18, na guerra de Canudos na Bahia, nos campos de Dachau e Auschwitz, nos campos de refugiados do Sudão, no assassinato de judeus pelo Hamas e na matança de palestinos pelo atual governo de Israel. A teorização de Agamben na série Homo Sacer demonstra como a exceção já está contida no próprio regramento constitucional e que o ocupante do poder é quem decide sobre sua utilização; também está na condição maquiaveliana do Príncipe que define o (a)bando(no) e o matável.
O assassinato acompanha o ser do homem desde os primórdios do homem de Java e de Neandertal, sendo a cultura e o Direito nela embutidos a tentativa de controlar a ferocidade humana. A guerra e a morte que Freud observou na carnificina da Primeira Guerra Mundial são o corolário da crueldade. A morte planejada e executada como genocídio foi praticada pelos faraós egípcios, pelos gregos nas guerras entre cidades como Esparta e Atenas, e pelos turcos na matança dos armênios. O regime nazifascista da África do Sul, anterior a Nelson Mandela, praticou essa política tanática durante toda a colonização holandesa.
A vida nua, que é a condição animalesca, volta à superfície da sociocultura, quebrando o verniz civilizatório. Essa biopolítica tematizada por Foucault é a realidade que os regimes de extrema direita assumem como ditadura parida pela democracia. A exceção ditatorial já está contida no próprio regramento constitucional democrático, como diz Carl Schmitt. O homem regride ao mais exacerbado individualismo narcísico, desprezando todos que na sua paranoia purificadora não correspondam às suas fantasmagorias de pureza racial, grandeza intelectual e moralidade canhestra confundidas com ética. A política, a religião e o assassinato se harmonizam nesse concerto da tirania. O narcisismo se sobrepõe à razão da compreensão lógico-simbólica. Bion formalizou conceitualmente isso na fórmula narcisismo↔social-ismo, caracterizando a dificuldade da parte psicótica do homem para pensar. Assim, o narcisismo da diferença pode justificar desde a gravata croata, na guerra da Bósnia, até a matança indiscriminada de mulheres e crianças na Faixa de Gaza.
O trágico, em todas as guerras, é que o ocupante do poder na tânatopolítica, se sente autorizado a mentir conforme a fórmula de Goebbels. Assim disse Netanyahu, após o ataque que matou sete funcionários da ONG World Central Kitchen: “Infelizmente, ontem, ocorreu um incidente trágico quando as nossas forças atingiram involuntariamente pessoas inocentes na Faixa de Gaza. Isto acontece numa guerra.”. Esses acontecimentos “trágicos” já estão ocorrendo há mais de sessenta anos na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, indicando o tipo de política tanática e colonial que os europeus praticaram largamente na África. A ONU tem reiteradamente condenado o morticínio produzido por Israel na Faixa de Gaza, mas suas manifestações retornam como ecolalia.
Desde os ataques as torres gêmeas – quando George W. Bush determinou a suspensão do direito internacional – que os EUA e seus aliados ingressaram na zona nebulosa do estado de exceção. A possível eleição de Donald Trump em cinco de novembro deste ano dará a Netanyahu e a todos os extremistas de direita o salvo conduto para a Tânatopolítica. O mais grave de tudo isso é que a paranoia redentora e purificadora está chegando ao poder nos países ocidentais ditos democráticos, usando os instrumentos constitucionais da democracia.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Política e Sociedade
Palavras chave: Matança, Vida Nua, Política, Narcisismo, Exceção.
Imagem: Guernica, Pablo Picasso, 1937 (Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia)
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