Observatório Psicanalítico OP 487/2024 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

31 de Março de 1964 

Julio Hirschhorn Gheller (SBPSP)

Esta é a data que marcou a “Revolução” chamada por alguns ingênuos ou fanáticos de “Redentora”. A bem da verdade, tratou-se de um golpe de Estado que instituiu no Brasil a ditadura militar. Foram vinte e um longos anos de um regime de exceção. De início foi declarado vago o cargo do presidente João Goulart, que, ao ser deposto, teve que se exilar no Uruguai. Ele era visto como um simpatizante do comunismo por sua intenção de realizar reformas de base tidas como “perigosas” – como a reformas agrária e fiscal – e que assustavam os mais ricos e a classe média conservadora. Em plena época da Guerra Fria, deu-se então o movimento pelo qual os militares pretendiam “salvar” o Brasil da “ameaça vermelha” e assumiam o suposto nobre dever de manter o país longe deste perigo. Em 1968, com o AI-5, o regime endureceu de vez, sendo decretado o fechamento do Congresso. O governo, a partir de então, detinha o poder de cassar mandatos e suspender direitos políticos. Jornais e meios de comunicação passaram a ser severamente censurados.

Não houve eleições para presidente até 1989. O rugido das ruas pelas “Diretas Já”, em 1984, precipitou o fim da ditadura. Contudo, vale ressaltar que, mesmo após a redemocratização, não existiu um empenho maior em apontar e avaliar os delitos cometidos durante a ditadura. Diferentemente da Argentina, onde os generais integrantes das Juntas Militares foram julgados, condenados e punidos pelos seus crimes, o Brasil adotou uma conduta excessivamente branda em relação aos graves fatos que marcaram os “anos de chumbo”. Torturas, assassinatos e o desaparecimento de opositores do regime, nada disso foi devidamente investigado e os seus responsáveis escaparam de um julgamento mais rigoroso que apurasse os desmandos e condenasse os culpados. Os assuntos incômodos foram varridos para debaixo do tapete em uma espécie de acordo para não responsabilizar os militares pelas transgressões durante o exercício do poder. Funcionou um acordo tácito que os poupava, um mecanismo característico da recusa da realidade: “sim, eles merecem punição, mas mesmo assim…”.

O tempo passou e experimentamos crise econômica no governo de José Sarney, bem como crise política no breve mandato de Collor. Este, o suposto “Caçador de Marajás”, foi outro dos terríveis equívocos dos eleitores, impressionados com um playboy criado em pleno contexto de privilégios e que arrotava discursos grandiloquentes e vazios. Parecia, em parte, uma réplica do malfadado Jânio Quadros, o homem que ia varrer a corrupção e só conseguiu gerar instabilidade no país. Após o impeachment de Fernando Collor, respiramos mais aliviados no clima democrático dos governos de Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e Lula. Este conseguiu fazer a sua sucessora, Dilma Roussef, que não tinha muito traquejo e habilidade política para encarar a difícil tarefa que lhe foi apresentada. O segundo mandato de Dilma foi bastante conturbado, culminando no impeachment de 2016 que a tirou do poder com o discutível argumento de que ela havia autorizado “pedaladas fiscais”. O vice Michel Temer, que havia trabalhado pelo impedimento da presidenta, assumiu o posto até o final do período regulamentar da gestão. A subsequente campanha eleitoral de 2018 teria como favorito o ex-presidente Lula, que, no entanto, acabou sendo preso por conta de uma investigação da Lava-Jato que o incriminou com a controvertida acusação de corrupção passiva. Assim, ele foi alijado da disputa.

Sem me deter em grandes análises, que fogem ao escopo desse modesto ensaio, chego à eleição de 2018, lamentavelmente vencida por um deputado do baixo-clero, um capitão reformado, que saíra do Exército pela porta dos fundos, praticamente expulso por suas condutas inadequadas. Havia sido um parlamentar sem nenhum trabalho meritório em sua carreira na Câmara dos Deputados, com uma trajetória marcada por indícios de ligação com as milícias do Rio de Janeiro. Era um notório representante da extrema-direita, alguém que defendia pautas de costume retrógradas e ideias de cunho autoritário. Para surpresa de ninguém que tivesse um mínimo de bom senso, tornou-se o líder de um verdadeiro desgoverno. Houve sucessivos descalabros na conduta da pandemia, uma absoluta negação da questão ambiental e um impressionante desprezo em relação à Cultura, à Ciência e aos Direitos Humanos.

Porém, o que vou destacar é a permanente atitude no sentido de fragilizar a democracia. Bolsonaro era pródigo em querer intimidar o poder judiciário, bradando ameaças em que fazia questão de se intitular como o “chefe supremo das Forças Armadas” – repetia esta autodenominação como que tomado pelo gozo inexcedível do antigo tenente que agora mandava nos generais –, capaz de contemplar ações arbitrárias para a execução de suas ordens. Em síntese, as Forças Armadas deveriam estar a serviço dos projetos do mandatário. Os militares foram seduzidos com várias vantagens durante seu governo, tais como benesses financeiras por meio de reajustes salariais generosos, uma reforma da previdência especialmente favorável, benefícios para filhas solteiras e a colocação em diversos cargos no governo, propiciando-lhes rendimentos extras. Além disto, surgiram evidências de que a caserna se dava ao luxo de despesas questionáveis, incluindo no seu orçamento compras de picanha, salmão, cerveja, uísque e até de Viagra e próteses penianas. Afinal, ninguém é de ferro e alguns chefes militares julgavam-se merecedores de um tratamento privilegiado.

Em 2019, por decisão do STF, Lula foi liberado da prisão e adquiriu a condição de concorrer novamente à presidência na eleição de 2022, tendo como adversário o então presidente, que tentava a reeleição. A campanha eleitoral foi caracterizada por intensa polarização. Bolsonaro e os seus apoiadores levantaram muitas duvidas quanto à lisura das apurações em urnas eletrônicas. Ele chegou a convocar embaixadores de países estrangeiros para apresentar suas críticas infundadas – sem provas a respaldá-las – a respeito das urnas.

A disputa foi muito acirrada, com uma vantagem final bem apertada para Lula, que contou com os votos de uma frente ampla, decidida a impedir o desastre que a reeleição de seu adversário significaria. Logo após a instalação do novo governo aconteceu o episódio do Oito de Janeiro com a invasão e depredação do Palácio do Planalto, da sede do STF e do Congresso, representando um verdadeiro episódio de vandalismo, que tudo indicava ser parte da orquestração de um golpe, visando a deposição do novo presidente, com a finalidade de reconduzir o candidato derrotado ao posto de presidente. As alegações para justificar o golpe, iludir os incautos e atrair adeptos eram a acusação de fraude eleitoral, o risco de uma intolerável guinada para a esquerda e a ameaça ao esquema de família tradicional. A essa altura, não se pode negar que o Brasil apresenta um grande contingente populacional de tendência conservadora, que poderia dar respaldo à manobra golpista.

Felizmente, o golpe foi abortado e a democracia sobreviveu. Sentimos então, durante 2023, a grande diferença que é viver em um ambiente democrático, o que, no meu entender, não exime Lula de eventuais críticas. Ao longo do ano passado a Polícia Federal coletou dados que foram divulgados mais recentemente, com claros sinais de que existiu, de fato, uma tentativa de conspiração com o planejamento de um golpe de Estado, sob a liderança do ex-presidente e com o respaldo de vários generais estrelados de seu entorno, que ocupavam cargos de ministros. O cerco da PF está cada vez mais próximo deste grupo de militares que parecem ser herdeiros ideológicos daqueles que tomaram o poder em 1964 e, se tudo correr normalmente, dificilmente escaparão de ser condenados por suas articulações antidemocráticas. Para isto se efetivar a PF e o STF devem manter posições firmes.

No entanto, existem problemas que não serão resolvidos se a nação novamente deixar de apurar com rigor a responsabilidade dos militares de alta patente no planejamento desse golpe que, muito provavelmente, instituiria uma nova ditadura no país. O fato é que o presidente Lula tem tomado atitudes para não melindrar os militares incomodados com a investigação da Polícia Federal, que pode vir a enquadrar vários deles. Nesse sentido, o presidente determinou uma lei do silêncio a respeito do aniversário de sessenta anos do golpe de 1964. Vetou manifestações alusivas ao 31 de Março, mas não somente aquelas que, eventualmente, elogiassem o movimento. Estão proibidos também eventos de teor crítico ao período da ditadura militar. O ministro Silvio Almeida, dos Direitos Humanos, teve que se submeter e cancelar uma solenidade programada para 01/04, cujo objetivo seria o de exaltar a luta dos militantes que foram perseguidos pelo regime militar. Outra situação a ser seriamente questionada é o fato de continuar travada a volta da Comissão de Mortos e Desaparecidos da Ditadura, que havia sido extinguida pelo governo anterior. Encarar as verdades desse período sombrio de nossa história teria um efeito didático, inestimável em termos de informar e formar os jovens.

A reavaliação dos tristes episódios ocorridos durante a ditadura seria importante como um tipo de vacina para prevenir tentativas similares no futuro, tal como o malogrado acontecimento do Oito de Janeiro. A atitude de passar pano para os militares provoca descontentamento para setores que apoiam Lula, configurando um possível equívoco político a ser corrigido. Entretanto, não é raro que o presidente se comporte como quem não admite reconhecer possíveis erros. Os seus auxiliares parecem temer contrariá-lo, não conseguindo alertá-lo para, inclusive, retificar algumas posições que podem prejudicar sua avaliação popular, conforme recentes pesquisas de opinião demonstram. O seu alinhamento frequente a ditadores de esquerda – como é o caso de Putin e Maduro – pode lhe custar a reprovação de segmentos mais ao centro, que assim são empurrados para a direita ou, até mesmo, para a extrema direita, favorecendo os grupos de bolsonaristas, ainda ávidos por um retorno ao poder. No que se refere à Venezuela, onde opositores são presos ou tornados inelegíveis, a fala de Lula foi de que as críticas ao país seriam meras narrativas. Posteriormente, disse que seria o caso de confiar, em princípio, na correção do próximo processo eleitoral na Venezuela. Somente agora em 26/03/2024, a diplomacia do Brasil mudou de tom, manifestando preocupação com a eleição na Venezuela, de vez que a representante maior da oposição foi tornada inelegível e a sua sucessora como candidata oposicionista estava tendo a sua candidatura bloqueada. A mensagem de nossa diplomacia recebeu uma resposta grosseira de Maduro, que afirmou que os seus termos pareciam ditados pelos Estados Unidos. Diante disso, Lula ajustou – finalmente – sua posição, revelando inquietação com os graves problemas no processo eleitoral venezuelano.

Às vezes, os pronunciamentos de Lula parecem ser influenciados por um tipo de esquerdismo antiquado dos tempos da Guerra Fria, época de acentuada divisão do mundo entre países socialistas e países capitalistas. Para numerosos adeptos mais radicais da esquerda no Brasil tudo o que tinha a ver com os Estados Unidos precisaria ser rejeitado e tudo o que tinha a ver com a Rússia deveria ser apoiado, daí talvez, a razão para as declarações atuais, simpáticas a Putin.  Há cerca de quinze dias o PT emitiu uma nota em que se regozijava pela reeleição para um quinto mandato presidencial do autocrata Putin, alguém que é suspeito até de eliminar seus adversários políticos.  Por vezes, a situação do “nós contra eles” assume características típicas da posição esquizoparanoide com seus extremismos cegos. Lembrei dos exageros de um antigo colega que não tomava Coca-Cola, pois ela seria “l’acqua nera dell’imperialismo”, de acordo com comunistas italianos.

O mundo mudou muito desde os tempos da Guerra Fria e certos posicionamentos de retorno àquela época, seja por parte de políticos do espectro direitista, seja por aqueles mais à esquerda, parecem ser retirados de um velho armário cheirando a naftalina e não se adequam à realidade dos dias de hoje. Aqui no Brasil, esta polarização persiste com evidências de uma radicalização incessante, principalmente dos grupos que se identificam com os valores mais tacanhos da extrema-direita.

Lula tem inegáveis qualidades como político, mas precisaria – atrevo-me a dizer – atualizar-se em algumas questões. Para tanto, deveria moderar aspectos de um narcisismo grandioso e traços de arrogância que o atrapalham no ajuste de algumas de suas diretrizes ideológicas para o tempo presente e em alguns de seus indefectíveis discursos de improviso.

Quero crer que nós psicanalistas torcemos pela democracia. Enquanto cidadãos capazes de compreender a realidade em volta, também podemos participar do debate público em defesa dos valores democráticos. Sabemos que o ser humano não é puro e bondoso por natureza, sendo importante a capacidade de renúncia pulsional para promover a civilização. Nesse âmbito cabe apontar e discutir os diversos tipos de preconceito que contribuem para a evolução do preocupante estado de beligerância observável na atualidade em todo o mundo.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

Categoria: Política e Sociedade 

Palavras chave: arrogância, gozo, narcisismo, posição esquizoparanoide, recusa da realidade.

Imagem: “Movimento Diretas, Já!” – Vale do Anhangabaú, São Paulo. 1984, com a presença de mais de 1,5 milhão de pessoas. Foto JB

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Tags: arrogância | gozo | narcisismo | posição esquizoparanoide | Recusa da realidade
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