Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Sobre os ossos dos mortos e a memória dos vivos
Liana Albernaz de Melo Bastos (SBPRJ)
Quando a Curadoria do OP me solicitou um texto sobre os 60 anos do golpe militar empresarial no Brasil fiquei muito mobilizada. Tinha muito o que dizer e, ao mesmo tempo, era como se tudo já tivesse sido dito.
Em 2 de abril de 2022 participamos, Edson Telles e eu, de um podcast do Mirante “Memória e Verdade”. Edson é filósofo, membro da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e coordenador do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo. Trabalha com o reconhecimento das ossadas das valas clandestinas do Cemitério de Perus em S.P. em busca de mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura. ”Os ossos são testemunhas; os ossos contam uma história”, quando os vivos querem saber. E, muitas vezes, ninguém quer saber. “Disso não se fala” (De eso no se habla,1993 ), é o título de um filme ítalo-argentino de Maria Luisa Bemberg que trata da ditadura argentina. Disso não se fala, diz ela, “porque ninguém quer saber”. Mas, para sabermos de nós, precisamos falar dos horrores das ditaduras.
Nosso presente não está divorciado do passado. As memórias nos constituem. Mas de que memórias falamos?
Em seu conto, Funes, el memorioso, Borges traz com seu personagem, a discussão da memória. A memória prodigiosa de Funes, no entanto, esgotava-se em si mesma. Nem presente, nem futuro. Para reconstruir um dia em todos os detalhes, gastava um dia inteiro. Conclui Borges: “Suspeito, sem embargo, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No abarrotado mundo de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos.”
Não à toa, Freud, já nos seus primeiros trabalhos, fez a distinção entre o polo perceptivo e as marcas mnêmicas. O polo perceptivo fica aberto num fluxo permanente. Ele é presente. As memórias são representações ligadas a percepções que, submetidas ao jogo pulsional, se tornam constitutivas dos sujeitos. São marcadas e remodeladas pelos afetos. Podem ser recalcadas e, ainda assim, continuam produzindo efeitos. Contar e recontar nossas histórias nos permite buscar sentidos. Compreendermo-nos a nós mesmos e aos outros.
Quando não podemos falar das sombras, daquilo que mancha e rompe, quando se precisa de valas clandestinas para encobrir ossos e memórias, ficamos amputados em nossa capacidade de pensar e de saber.
O não saber se ancora na recusa da realidade, característica perversa – resumida no “eu sei, no entanto…” – e no desmentido, “isso não aconteceu”. Estes mecanismos operam tanto no sujeito individual quanto no coletivo. Em ambos os mecanismos, o que está em jogo é a ilusão da perfeição narcísica. O bem/o bom sou eu e aqueles que me tomam como ideal. O mal/o mau é tudo/todos que a isto não se alinha.
Na recusa, é a própria falta, a incompletude de si mesmo que não pode ser admitida. A alteridade é ameaçadora para a unidade. É também para não criar fissura na completude narcísica que se dá o desmentido daquele que se omite como testemunha. No desmentido há a desresponsabilização do sujeito/coletivo ao não se reconhecer a situação traumática sofrida atribuindo-a à vítima, ao vulnerável, desqualificando-o e assim nulificando sua existência. Nos dois casos, a alteridade é violentamente extirpada.
O Brasil emergiu de violências que se perpetuam. Do genocídio indígena à escravização de milhões de africanos, chegamos à alarmante desigualdade social que nos assola. As violências são muitas: o racismo estrutural, os ataques à população LGBTQIA+, o sexismo, os feminicídios, as mortes da população da periferia, especialmente de jovens e negros, a invibilização do povo da rua.
Fundada nos privilégios, a sociedade brasileira mantém seus capitães do mato. Pode ser a polícia e/ou a milícia. Os militares também entram em campo sempre que se invoca “a lei e a ordem”. A cada tentativa de melhoria dos vulneráveis, há uma reação violenta. O Brasil não é cordial. Uma infinidade de revoltas populares – que a história oficial pouco conta e que se quer extirpar da nossa memória – tingem de sangue nossa terra.
Em 64, as reformas de base foram o estopim. A novidade da ditadura foi que os militares também fizeram o trabalho sujo sem nenhum pudor. Militares foram treinados por especialistas estrangeiros em torturas para “aprimorarem seus métodos” utilizando presos políticos como cobaias. (Quem não se lembra de Dan Mitrione?) Legitimada, a tortura se transformou em política de Estado. Nós, psicanalistas, não podemos apagar a terrível nódoa que representou o caso Amilcar Lobo/Leão Cabernite com a complacência da IPA, na figura do seu então presidente Serge Lebovici, e a corajosa denúncia feita por Helena Besserman Viana.
Além da tortura sistemática, os serviços de informação, usados pelas forças armadas para a eliminação seletiva dos inimigos, difundiu-se nas forças paramilitares.
Em 2023, a execução de três ortopedistas que participavam de um Congresso Internacional na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, configurou um “erro” de informação. Um deles teria sido confundido com um chefe de milícia rival.
Tudo isto nos revela a atualidade que a violência organizada de forma sistematizada durante os 21 anos de ditadura militar (financiada, mais uma vez, por grandes empresários nacionais e estrangeiros) continua a produzir.
Desde então, a extrema direita vem conquistando corações e mentes de muitos. Aproveitando-se do desamparo que deixa, à margem do sistema, milhões de brasileiros, mobilizando defesas arcaicas de adesão ao líder (Freud, 1921), potencializadas pelas mídias sociais, ela viceja entre os “ingênuos” e os “cínicos” (Freire, 2023). Não saber e não ter memórias é não pensar.
Nossa frágil democracia, ainda muito longe de ser representativa, é uma pequena janela que corre sempre o risco de ser fechada. Cumpre-nos não só com palavras, mas também com ações – assim Hanna Arendt define a política – mantê-la aberta para ampliá-la e arejá-la.
Em 2018, aos 100 anos, com muitas dificuldades de memória desde que minha mãe, sua leal companheira, se fora, meu pai junto a outras pessoas, foi homenageado por seu passado sindical. Ao receber a medalha levantou-se, e, surpreendentemente lúcido e, com voz firme, apresentou-se falando de sua trajetória política. Concluiu dizendo que enquanto tivesse pernas e pudesse andar que poderiam contar com ele nas lutas democráticas.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Política e Sociedade
Palavras chave: Ditadura militar; Recusa e desmentido; Memória; Violência; Lutas populares
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