Observatório Psicanalítico OP 480/2024

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Da vulva ao óvulo ou a Fábula da Galinha dos ovos de ouro

Renata Viola Vives (SBPdePA)

Recentemente Lina Schlachter trouxe à discussão o tema da vulva – o temor ao feminino, ao corpo da mulher. O belíssimo texto da colega me remeteu a pensar e escrever sobre a apropriação e o domínio do corpo feminino, mais claramente sobre a dessubjetivação do corpo feminino, através de seu controle, mesmo quando o contexto parece afirmar que a mulher está “no comando”: refiro-me à postergação da maternidade apoiada nas tecnologias reprodutivas através do congelamento de óvulos.

Dedicando-me ao tema da reprodução assistida há mais de 15 anos, tenho pensado na reprodução dos corpos e na exploração dos mesmos, inclusive quando a tecnologia parece estar a serviço do bem comum.

A igualdade dos direitos, o mercado de trabalho, o desejo de viver outras experiências têm feito muitas mulheres postergarem a maternidade, também apoiadas na promessa de que, a partir dos avanços das tecnologias reprodutivas, a maternidade virá a qualquer tempo.

A partir da década de 60, com a liberação sexual e com o advento da contracepção, passou a haver uma recusa da maternidade como destino, como um dever da mulher, e, consequentemente, o rompimento com os modelos maternos e/ou femininos vigentes das gerações precedentes.

A taxa de nascimento diminuiu nos países ocidentais, a idade (em média) da primeira gestação foi postergada, a esterilidade se tornou voluntária e as tecnologias reprodutivas trouxeram mudanças significativas ao intervirem nos corpos.

Para Ramirez-Galvez (2007), no Brasil, por exemplo, é crescente o número de profissionais que trabalham com técnicas reprodutivas. Essas intervenções iniciaram na década de oitenta. Em São Paulo, dois grupos entraram na disputa para conseguir a gestação do primeiro bebê de proveta, processo que contou com o financiamento de empresas privadas, entre elas, a principal emissora de TV na época e a indústria farmacêutica. A emissora de TV pretendia ter os direitos exclusivos para transmitir ao vivo a primeira fertilização in vitro do país.  

Atualmente, são as redes sociais que acabam tendo um papel importante na difusão da RA: um bem de consumo moderno, sofisticado e valorizado. Recentemente, uma atriz brasileira foi mãe aos 46 anos com óvulo doado e outra tem falado abertamente sobre o congelamento de óvulos, afirmando que não pensa em ser mãe, mas em ter “uma reserva.”

Compartilho a ideia de Ramirez -Galvez (2007) ao afirmar que, até então, a gravidez, o parto e o nascimento eram considerados eventos naturais da vida. A medicalização do processo reprodutivo teve diversas implicações, entre elas o escrutínio do corpo feminino e a consequente política de controle, onde a medicina se apropriou do desejo de filhos, fazendo com que quanto maiores e mais modernas fossem as técnicas empregadas, maiores as promessas de sucesso e a fantasia de cura. A infertilidade, assim, passou a ser tratada quase exclusivamente como uma “doença”.

Também sabemos que, além do parto, a puérpera e o recém-nascido na UTI neonatal ficaram distanciados do contato com a psicanálise – somente naqueles casos em que a equipe desconhece o que fazer, o psicanalista é chamado. Lembremos o relato de Mathelin (1999) que conta a história de uma mãe de um bebê prematuro há 3 meses hospitalizado que, ao receber a notícia de sua alta, diz à equipe médica que fique com ele.

Mas o parto é da ordem da psicanálise, é subjetivo, assim como o é o recém-nascido, como foi sua reprodução. Por que, então, frente às tecnologias reprodutivas, por vezes estamos deixando a psicanálise nos escapar ou estamos deixando a subjetividade nos escapar? Sucumbindo a um discurso que dessexualiza a reprodução? Estamos frente a um discurso médico que pode dessexualizar a reprodução à medida que preconiza técnicas como as únicas capazes de dar o filho tão desejado a casais que muitas vezes nem mantém relações sexuais, por exemplo. O que antes era narrado como um ato privado, de intimidade, passa a ser público através de procedimentos médicos controlados, mediante trocas econômicas. Isso se aplica ao ato procriativo, ao parto, ao corpo como um todo.

A medicalização da mulher e a manipulação do seu corpo seria uma ilustração da transformação da vida em uma sequência de eventos que demandam formas peculiares de bens de consumo, de serviços diagnósticos e terapêuticos, para oferecer um filho como cura.  

Na reprodução assistida observa-se a fragmentação do processo reprodutivo:  um útero, as trompas, os ovários, os óvulos, bem como a qualidade atribuída a eles: bons, ruins, novos, velhos, etc. Se temos partes do corpo, temos fragmentos, temos trocas possíveis, doações, cedências, compras, vendas. Mercados que se estabelecem. Sejam lícitos ou não.

Mercados estão associados a bancos, a dinheiro, a economias. Como nos diz Deleise de Perseval (1994), a aspectos da analidade. Propriedade, produto, fezes, pênis, bebês, equação simbólica, nada da ordem da genitalidade, ainda que o discurso se confunda. Óvulos e espermatozoides são bens de consumo, avaliados de acordo também com seu valor genético. Embriões são bons negócios, assim como ser barriga de aluguel.

Nos Estados Unidos, por exemplo, a maternidade substituta é uma instituição burocratizada que envolve empresas, complexos contratos e remuneração, bem como em outros países, caracterizando o que se chama hoje de turismo reprodutivo. O comércio do armazenamento de óvulos, através da ideia de criar uma reserva, impõe-se freneticamente, pedindo às mulheres que guardem “seus bens” para a utilização futura, mesmo que no momento não consigam sequer pensar em maternidade. Não é necessário pensar, afinal são “somente células”. Com a ideia de postergar a maternidade para realizá-la a qualquer momento, cria-se a ideia de um domínio do corpo, de uma desmentida da finitude e de suas angústias.  

Outro “comércio” importante diz respeito ao recrutamento de doadoras de óvulos, como muito bem retratado no Documentário Eggsploitation.

Falando em óvulos, me vem à mente a Fábula da Galinha dos Ovos de ouro, onde, após enriquecer, o fazendeiro, crente de que a galinha possuía ainda mais riquezas dentro de si, resolve matá-la e nada encontra, ficando sem os ovos e sem a galinha. É o corpo que paga: o corpo da mulher, ou seja, vai-se às últimas consequências para se obter a “riqueza”, o tão sonhado filho ou a apropriação daquilo chamado “ continente negro”.

Estamos no campo da comercialização do material humano que é amenizada pelo discurso do altruísmo e da dádiva, do dom, da bondade, com o intuito de mitigar o sofrimento alheio.

Nas diversas tentativas de coletas de óvulos ou transferências de embriões, muitas mulheres esgarçam os limites corporais para se tornarem mães, e algumas morrem, ou seja, corpos maltratados sāo criados para se obter o exercício da parentalidade.

Como fugir desse enredo mortífero? Um enredo de sacrifício? Será na brecha da díade corpo-sacríficio que a medicina, a farmacologia e a própria psicanálise encontrarão seus desafios cotidianos.

Lembremos que, antes de Freud, a ideia era de que o padecimento do corpo tinha origem sempre exógena, onde era o mal que invadia o corpo. É nos Estudos sobre a Histeria que Freud revela um outro corpo: um corpo que a medicina da época não dava conta. Atualmente, nos vemos às voltas com uma medicina que, ao contrário do início do século XX, despreza o psíquico e releva a psicossexualidade em segundo plano.

As pacientes histéricas de Freud sofriam de padecimentos físicos, mas desejavam falar e desejavam ser ouvidas. Dessa forma, Freud foi entendendo a construção de seus sintomas. Nossas pacientes de hoje buscam um filho e são dissecadas como cadáveres vivos.

São mulheres pressionadas por uma cultura que dita o sucesso para se ter um bebê e, por isso, passam a viver, comer, dormir, meditar, se exercitar em função da RA. Essa rotina, a rotina da RA, passa a ser administrada junto com o resto da vida, resultando que todos os demais projetos sejam colocados de lado. 

Enquanto frequentes fracassos levam a repetidas e exaustivas tentativas, as tecnologias seguem intervindo no corpo (feminino) – é esse que sofre o controle, alheio à mulher, que ainda luta para ser aceita e para ter o domínio do seu próprio corpo e de sua reprodução. Assim, o que está em jogo não é a tecnologia e as possibilidades de auxiliar pessoas, mas a utilização da mesma, que novamente coloca a mulher e seu corpo em cena, não como protagonista, mas como um bem.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Política e Sociedade 

Palavras-chave: reprodução de corpos, maternidade, reprodução assistida, dessubjetivacao da maternidade

Imagem: Paula Modersohn-Becker, autorretrato grávida, 1906.

*Paula Modersohn-Becker foi uma artista do Expressionismo Alemão, no início do século XX. Seu autorretrato grávida é provavelmente a primeira representação do gênero no contexto da História da Arte.

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Tags: dessubjetivacao da maternidade | maternidade | reprodução assistida | reprodução de corpos
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