Observatório Psicanalítico OP 477/2024

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

Mulheres interrompidas: os caminhos para a sobrevivência feminina no  Brasil

Kátia Barbosa Macêdo – SBPG

Nascer em um corpo de mulher por si só já constitui um desafio. Quando isso ocorre em um país onde a violência contra a mulher está enraizada na cultura, esse desafio se multiplica exponencialmente. 

O Brasil tem uma herança de patriarcado de mais de quatro séculos, sobre a qual o Estado patrimonialista e o machismo estrutural se assentaram e, nesse cenário, a mulher, por longo tempo, foi tida como objeto e uma quase propriedade de pais, maridos e filhos. 

Somente na primeira metade do século XX, com o processo de industrialização e a consequente urbanização, a mão de obra feminina entrou no mercado de trabalho. Nesse momento, a luta pelos direitos das mulheres se iniciou, porém, com conquistas lentas e tardias. Basta lembrar que até 1962, no Brasil, a mulher casada só poderia trabalhar com autorização do esposo. Somente após a promulgação do Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121/1962) que passaram a trabalhar sem a referida autorização. No entanto, apesar de as mulheres terem passado a ingressar no mercado de trabalho, esse espaço, que era tradicionalmente masculino, continuou/continua com a lógica masculina de discriminação e de violência típica das relações de gênero. Assim, mesmo após muitas conquistas, como a aprovação de leis para resguardar seus direitos, elas ainda enfrentam inúmeras situações que comprometem seu desenvolvimento saudável, tanto físico quanto psíquico.

O contexto sociopolítico econômico apresenta indicadores da sobrecarga a que as mulheres no Brasil são expostas, desde a dificuldade de acesso aos cuidados primários e os obstáculos para usufruir o direito à amamentação, passando pela precariedade dos serviços básicos de saúde, educação e segurança, até as duras condições do mercado de trabalho que precisam enfrentar para garantir a sua sobrevivência.

Segundo dados do Dieese e do Censo do IBGE (2023), a maioria dos domicílios (50,8%) no Brasil é chefiada por mulheres. Do total da força de trabalho no Brasil, as mulheres correspondem a 44%, sendo também a maioria entre os desempregados (55,5%) e desalentados, circunstância em que as pessoas querem trabalhar, mas não procuram colocação por acreditarem que não vão encontrar uma vaga (PNAD/IBGE (2022).

Mesmo as que trabalham se deparam com condições precarizadas, são subocupadas e recebem menos que os homens quando executam as mesmas tarefas.  Em termos de rendimentos, as mulheres ganham, em média, 21% a menos do que os homens (DIEESE, 2023; IBGE, 2023).  

Ao se abordar a questão do trabalho feminino, não se pode esquecer da dupla ou tripla jornada, pois, quando concluem a jornada fora de casa, geralmente são as mulheres as responsáveis por todos os afazeres domésticos e cuidados com crianças, adolescentes e idosos. Esse é outro fator que as sobrecarrega, tanto financeira quanto física e psiquicamente. 

Mesmo após 30 anos de aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), o Brasil ainda carece de creches e de vagas suficientes nas escolas. Muitas mulheres são obrigadas a deixar seus filhos em casa para trabalhar, e a maioria não consegue sequer amamentar, mesmo após a promulgação da Lei que garante esse direito. 

Como todo processo histórico que envolve mudanças culturais, as reações e os impedimentos são constantes. Das várias formas de violência,  a que envolve as relações  de trabalho também  impacta mais as mulheres, principalmente  o Assédio  moral e sexual. Houve avanços no sentido de promulgação de leis, porém a falta de recursos e de prioridade para o aparelhamento dos órgãos públicos a fim de que possam cumprir sua função faz com que essas medidas estejam ainda aquém do esperado. Se somarmos a esses problemas a impunidade em relação a vários crimes contra mulheres que continua imperando no país, a situação de fragilização e de desamparo enfrentada ainda é uma realidade inegável.  

Desde o início das suas publicações psicanalíticas, Freud já assinalava a centralidade das relações ou dos vínculos para a constituição de sintomas e o processo disfuncional na dinâmica psíquica. No decorrer de sua obra, fica evidente a ampliação que ocorreu ao abordar os laços e relações. Se, no início, a ênfase era no vínculo mãe-bebê e na triangulação edípica, a partir de Totem e tabu houve a necessidade de ampliar essa noção das relações, incluindo aspectos da cultura. Na Psicologia das massas e análise do ego ([1921] 1986), ele descreve detalhadamente todo o processo de identificação e a importância da cultura para a constituição psíquica. Desde então, os traços da cultura e do contexto passaram a ser considerados como fatores fundamentais na formação do indivíduo, para sua constituição como membro da sociedade.

Esse contexto social e cultural gerou impactos na dinâmica familiar. A configuração da família moderna se estrutura a partir das novas divisões de tarefas entre pais e filhos; a entrada da mulher no mercado de trabalho cada vez mais competitivo e a condição pós-moderna da sociedade capitalista ocidental são alguns aspectos que impactam na inserção social e na identidade feminina, que tenta conciliar o papel de mãe, mulher e profissional.  Como isso se constitui um desafio, algumas mudanças já são  percebidas: a postergação da maternidade para após da estabilidade profissional, a opção  por não  ter filhos, a diminuição  do número de filhos, ou seja, uma mudança de prioridades no plano de vida e carreira.

Em uma de suas últimas entrevistas, ao ser perguntado sobre quais fatores eram preponderantes para uma pessoa ter saúde mental, Freud respondeu: amar e trabalhar. O trabalho é considerado um dos fatores de constituição do psiquismo, principalmente em uma sociedade que adota a centralidade do trabalho como fator de inclusão social, de identidade pessoal e profissional e elemento para a manutenção da saúde  psíquica (Dejours).  

Quando a sociedade oportuniza um mercado de trabalho inclusivo, igualitário e justo para os trabalhadores, independentemente de gênero, raça ou classe social, contribui para a sustentabilidade  e para a promoção do bem estar social.  Em contraponto, ao negar ou dificultar o acesso de mulheres ao mercado de trabalho, atua na contramão, contribuindo para o aumento da desigualdade, exclusão, violência e aumento de doenças decorrentes da pobreza, falta de acesso às condições mínimas para uma vida digna.

O Brasil ainda não foi capaz de garantir condições saudáveis para o desenvolvimento de suas mulheres.  Os altos índices de abandono de menores, estupro, exploração sexual de crianças e adolescentes, tráfico de mulheres, prostituição e feminicídio apontam para a necessidade de mais políticas públicas e recursos para viabilizar ações que previnam a violência contra as mulheres e garantam um desenvolvimento saudável para suas cidadãs.

Temos, portanto, um longo caminho a percorrer até chegarmos à promoção do trabalho decente, preconizado pela OIT em 1999, que prevê a oferta de postos de trabalho formais, com distribuição de renda equitativa, e desenvolvimento sustentável. Mesmo o Brasil sendo signatário dessa proposta, infelizmente ainda se constitui como  uma meta distante.  Convido a todos  para se juntarem a nós nessa luta por uma sociedade mais justa.

Diante disso, ao esboçar uma resposta para a célebre pergunta de Freud  “O que deseja uma mulher?”, seria: viver… livre e em paz.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Política e Sociedade 

Palavras-chave: exclusão no trabalho, saúde ocupacional,  mercado de trabalho,  feminino, violência

Imagem: “Dia da Igualdade Salarial”, criado pela artista Michele Pred @michelepred. Mais do que um acessório de moda é uma declaração de solidariedade às mulheres de todos os lugares que continuam a lutar por seu lugar de direito no cenário econômico. A igualdade salarial não é apenas uma questão econômica, mas uma questão de justiça e dignidade para todos, conforme @allendeisabel no link https://www.instagram.com/p/C4aSPZev-Sl/?igsh=MW1hMzNwcmIwdWtpOQ==

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Tags: exclusão no trabalho | feminino | mercado de trabalho | saúde ocupacional | violência
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