Observatório Psicanalítico OP 476/2024

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Para a mulher que aborta, repouso.

Gizela Turkiewicz – SBPSP

“Estava totalmente decidida a abortar. (…) Bastava seguir o caminho trilhado por uma longa coorte de mulheres. (…) Milhares de moças subiram uma escada, bateram numa porta atrás da qual havia uma mulher de quem nada sabiam, a quem confiariam seu sexo e seu ventre. E essa mulher, a única pessoa capaz de fazer o sofrimento passar, abria a porta.” 

Esta poderia ser a história de uma mulher brasileira em 2024, acontecendo neste exato momento. Mas o ano é 1963, a autora é Annie Ernaux e a experiência de um aborto clandestino relatada no livro “O acontecimento”. Aos vinte e poucos anos, a jovem Annie escreveu em seu diário: “escreverei para vingar minha raça” – frase que mais de 60 anos depois nortearia seu discurso na entrega do Nobel de literatura em 2022. Ernaux viveu para ver o direito ao aborto tornar-se constitucional na França.

O acontecimento que permeia sua vida e literatura não é apenas o aborto em si, mas a violência traumática e culpabilizante que sofre a mulher que aborta. O aborto foi para ela um renascimento de si mesma; que, por um lado, a libertou de cumprir a sina de levar adiante uma gravidez indesejada, e por outro, deixou marcas como acontecimento traumático que teima em reaparecer em suas lembranças e escritos.

No dia 8 de março deste ano, o presidente francês Emmanuel Macron promulgou o direito ao aborto na constituição francesa, decisão aprovada com imensa maioria no parlamento do país (780 votos a favor e 72 contra). Assim, a França, onde o procedimento é legalizado desde 1975, se torna o primeiro país a garantir de forma irreversível a liberdade de escolha da mulher como direito constitucional. O acontecimento é simbólico, não apenas pela garantia de direitos das francesas, mas por se passar em um momento em que o direito das mulheres à liberdade de escolha está ameaçado em diversas regiões do mundo, com o avanço do conservadorismo e da extrema direita, como os retrocessos que ocorreram nos Estados Unidos, na Hungria e na Polônia, e a estagnação da discussão em tantos outros países. 

No vasto e particular universo da América Latina, enquanto alguns países caminham para descriminalização do aborto, como é o caso da Argentina, do Uruguai, da Colômbia, de Cuba e Guiana Francesa; em outros, ele é proibido em qualquer circunstância, podendo resultar em penas tão duras quanto a prisão perpétua. Este é o caso do Haiti, da República Dominicana, do Suriname, de El Salvador e da Nicarágua. Nos demais países, a legislação é restritiva, autorizando o procedimento em casos de risco de morte à mãe e algumas outras situações específicas. 

No Brasil, o aborto é permitido em casos de estupro, de risco de vida à mãe ou de anencefalia, malformação congênita incompatível com a vida. Em todos os outros casos, é considerado crime que pode resultar em um a quatro anos de prisão para a mulher e para o profissional que o fizer. Pela própria natureza clandestina, não sabemos ao certo quantos abortos ilegais acontecem anualmente em nosso país, mas por dados indiretos pode-se estimá-los, e estas estatísticas estão na ordem de centenas de milhares. As internações por complicações pós-aborto pelo SUS estão em torno de 80.000 por ano, e um número considerável de mulheres morre em decorrência delas. Destas, a maior parte são mulheres solteiras, jovens e negras. 

Mesmo quando o aborto é previsto por lei, as mulheres que necessitam do procedimento enfrentam dificuldades de acesso, tanto pela escassez de serviços e profissionais disponíveis a realizá-lo pelo SUS, quanto pelo julgamento moral a que são submetidas nas instituições, na cultura e em seus círculos sociais e familiares. Se desde 1890 o Brasil é proclamado um país laico, o que vemos na realidade é a religião majoritariamente cristã atravessando nossas instituições e estruturas sociais. 

Neste momento, a discussão sobre a descriminalização do aborto está em aberto no STF, estacionada num imbróglio com tintas morais, religiosas e da estrutura patriarcal que rege as relações institucionais e de poder. Às vésperas de sua aposentadoria (2023), a ministra Rosa Weber, então presidente do STF, posicionou-se em seu voto a favor da descriminalização: 

“Nós mulheres não tivemos como expressar nossa voz na arena democrática. Fomos silenciadas! (…) Não tivemos como participar ativamente da deliberação sobre uma questão que nos é particular, que diz respeito ao fato comum da vida reprodutiva da mulher, mais que isso, que fala sobre o aspecto nuclear da conformação da sua autodeterminação, que é o projeto da maternidade e sua conciliação com todos as outras dimensões do projeto de vida digna.”

Dias depois, no congresso nacional, uma sessão especial celebrou o “dia do nascituro” – embriões e fetos não nascidos. Há um projeto de lei que procura equiparar os direitos do nascituro aos direitos de qualquer cidadão, a começar pelo “direito à vida”. Uma decisão como esta tornaria ilegais mesmo os abortos que são direitos constitucionais no Brasil. Acima de tudo, seria uma decisão a respeito do cerceamento dos direitos das mulheres, demovidas da condição de cidadãs à condição de depositárias de bebês. 

O sucessor da ministra na presidência do STF, Luís Roberto Barroso, ao assumir o posto, declarou que por ora (ou seja, por tempo indeterminado) não seguiria adiante com o julgamento, por considerar que a discussão sobre o tema não estaria madura o suficiente em nossa sociedade. Assim, posicionou-se: “O aborto é uma coisa indesejável, deve ser evitado, o papel do estado é impedir que ele aconteça na medida do possível, dando educação sexual, contraceptivos, amparando a mulher que deseje ter o filho. Mas colocá-la na cadeia se viveu esse infortúnio, não serve para absolutamente nada. É uma má política pública a criminalização”.  

Ainda que se possa argumentar que o assunto é espinhoso e que o aborto é visto como tabu por uma considerável parcela da população brasileira, o que supostamente justificaria a imaturidade da questão, o paradoxo entre as vozes de Weber e de Barroso nos leva a pensar na óbvia binaridade das posições entre homens e mulheres, e, assim, seguimos nos perguntando se seria necessário sentir na pele, ser mulher, para considerar a pauta como prioritária. Se esperamos demais para que determinados frutos amadureçam, particularmente os mais frágeis, corremos o risco que eles apodreçam antes da colheita. Certos tabus não caem de maduros, precisam ser derrubados.

A decisão que incide sobre o corpo, o futuro e a subjetividade da mulher segue nas mãos de um sistema social, político e moral majoritariamente ocupado por homens brancos heterossexuais. Se o desígnio do próprio corpo de uma parcela que compõe mais da metade da população está submetido a uma estrutura de dominação onde a mulher não pode ter voz e poder de decisão, os valores democráticos estão ameaçados. Uma vez mais (e todos os dias), o corpo da mulher é visto como objeto de decisão de outros sem levar em conta a subjetividade que habita estes corpos. 

Estes são nossos acontecimentos. Eles dizem respeito a todas e todos nós. 

Rosa Weber viverá para ver a descriminalização do aborto no Brasil?

Retomemos a experiência de Annie Ernaux relatada em “O acontecimento”. Talvez, hoje em dia, suas palavras não sejam mais tão atuais para as mulheres francesas, são mais um testemunho de um percurso trilhado em direção à conquista de um direito. A autora escreve sobre a própria vida, partindo do que é particular – memórias, diários, fotografias –, para falar do que é comum, o que acontece no coletivo, no social, e afeta muitas outras mulheres, além dela. Tantas outras mulheres ao redor do mundo. Ao compartilhar sua experiência, é possível encontrar um outro sentido para o acontecimento. É nesta experiência de transformação que ela encontra um lugar de repouso. 

A violência do acontecimento remete à assimetria com que é vivida a liberdade sexual entre um homem e uma mulher. É no corpo da mulher que ela incide. É a vida da mulher que é atravessada seja pela gravidez, seja pela violência de um aborto clandestino. A sexualidade feminina é carregada de culpa e castigo. Além disso, uma vez que a mulher não pode escolher o destino que se incide sobre seu corpo, é possível falar em liberdade? O direito à sexualidade só poderá ser vivido em sua integridade pelas mulheres quando todas tivermos livre acesso à anticoncepção e à possibilidade de escolhas, entre elas a de levar ou não uma gravidez adiante, sem que por isso sejamos julgadas pelas leis ou pela moralidade. 

Todos os dias, milhares de abortos clandestinos acontecem no Brasil. Todos os dias, mulheres morrem por complicações decorrentes destes procedimentos. Todos os dias, meninas e mulheres são privadas de seu direito de escolha e de determinação da própria vida. Diariamente. 

“Para quem se comporta: brinde. 

Para a mulher que aborta: repouso.”

As palavras da canção “Diariamente”, na voz de Marisa Monte, colocam o repouso para a mulher que aborta entre os fatos cotidianos, quase óbvios. Não importa se este aborto foi natural ou induzido, o corpo que atravessou esse acontecimento necessita de repouso. A subjetividade da mulher que tomou esta decisão precisa de tempo. Não de julgamento. Não de violência. Não de intolerância. 

Oxalá a nossa geração viva para ver esse repouso entre as coisas cotidianas que a mulher possa viver, diariamente.  

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Política e Sociedade

Palavras-chave: 8 de março, feminino, feminismo, aborto, descriminalização do aborto  

Imagem: CNN Brasil (França é o primeiro país do mundo a incluir o aborto na Constituição) 

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Tags: 8 de março | Aborto | Descriminalização do aborto | feminino | feminismo
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