Observatório Psicanalítico OP 475/2024

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Filhos da Vulva 

Lina Schlachter (SPFOR) 

Era uma vez uma mulher chamada Dona Ceres. Ela morava em um bairro na periferia de Fortaleza, Ceará, e era conhecida por ter um “dedo verde”. Diziam isso porque bastava ela colocar suas mãos em uma plantinha para que logo ela enverdecesse. Assim, ela era bastante requisitada por quem gostava de alegrar seu ambiente com plantas, e de se alimentar com uma comidinha mais saudável, livre de agrotóxicos.   

Para ajudar no sustento de sua família, ela tinha uma horta. Todo domingo, ela vendia frutas e legumes que lá brotavam. Era uma festança na redondeza, seus produtos eram uma gostosura, e quem provava sempre queria repetir.   

Só que um dia sua filha mais velha, Cora, sumiu. Dona Ceres ficou muito triste e desolada. Todo sorriso do seu rosto foi, de repente, embora. Buscando sua filha, ela vagou por todo o seu bairro como uma alma penada. Ela bateu de casa em casa perguntando se alguém tinha notícias. Ninguém dava nenhuma informação. Até que uma mulher, finalmente, contou que escutou gritos, mas não identificou de quem era. Dona Ceres, então, apelou para um vizinho que tinha a fama de tudo saber do que acontecia à luz do dia. Ele, não contrariando a sua reputação, contou que um homem da facção havia raptado Cora, e de que nada havia adiantado os gritos que a jovem urrou.   

Dona Ceres foi arrebatada por uma grande dor. O sofrimento foi tamanho que ela resolveu passar um tempo em outro bairro, e lá ficou hospedada na casa dos seus amigos Celso e Ivanira. Eles eram bons anfitriões e, assim que ela chegou, lhe ofereceram uma bebida para se animar. Dona Ceres, em luto, claro que não aceitou.   

O que a pobre mulher não contava era que uma funcionária já idosa, a Babi, estava determinada a melhorar o seu humor. Em um ato de sororidade, pasmem, ela levantou a própria saia. Não se sabe bem o que foi visto: há quem diga que, ao exibir sua vulva, uma criança estava lá, e há quem fale que o movimento dos lábios genitais de Babi era engraçado. O fato é que, diante de tal cena, Dona Ceres sorriu. E esse riso a fez renascer. Ela uniu, então, suas forças, bebeu a tal bebida oferecida, e resolveu fazer um protesto: não cuido mais de planta alguma até ter minha filha de volta.   

As plantas frondosas de seu bairro murcharam. A horta deixou de dar frutos. E o seu marido, Deusdeth, que era pessoa muito influente e até agora não havia se comovido com a situação, se viu obrigado a intervir no caso. Preocupado com a repercussão do ato da esposa, ele negociou com a facção e conseguiu libertar a filha. Só que antes da tal soltura, o homem raptor manipulou a jovem e fez sexo com ela. O sexo, para a facção, tinha o significado de que agora a mulher era propriedade do homem. À Dona Ceres nada restou a não ser acatar a lei do crime, mas, a partir daí, todos sabiam: as melhores colheitas sempre seriam quando a filha à mãe se unia.   

A história de Dona Ceres foi inventada. Ela é uma tentativa de trazer para a nossa contemporaneidade o mito de Deméter. Os paralelos são muitos, afinal, tomamos conhecimento, diariamente, de inúmeros crimes a “mulheres-Cora” (feminicídio, estupro, assédio, criminalização de abortos e tantos outros), temos também várias notícias de movimentos de luta de “mulheres-Dona Ceres” (as mães da Cinelândia, as mães da Sé, as mães do Curió, e muitos outros), e  nos deparamos constantemente com “homens-Deusdeth” que silenciam, ignoram ou até mesmo são a favor do ainda atual, apesar de ultrapassado (será?), poder e domínio dos homens sobre as mulheres.   

O que quero chamar atenção aqui, no entanto, é para a personagem Babi que, com seu gesto, possibilitou a reviravolta da história. Babi corresponde à figura de Baubo, uma deusa da mitologia grega, conhecida por ter a aparência de uma vulva e por ser a deusa do humor.   

O humor já foi um tema abordado por Freud (1927). No trabalho, ele ressaltou que o humor é rebelde, pois, a partir dele, podemos fugir das agruras da vida. Mas não é só isso. O humor, a partir da transgressão, também é capaz de criar.   

Há quem defenda, aliás, que o universo nasceu de uma enorme gargalhada. Nessa versão (Minois, 2003), Deus, acometido por uma crise de riso, provavelmente por perceber o absurdo de sua existência, criou outros absurdos: a luz, a água, a matéria, o tempo etc. Assim, a história é de que houve um verdadeiro big bang cômico a partir de risadas divinas no início de nossa existência. Aqui, em nossa história, não foi diferente: a vida ressurgiu a partir do humor. Somente após Babi levantar sua saia que retornou a alegria de viver de Dona Ceres.   

Apesar das diferentes interpretações do que foi visto sob a saia de Babi, uma verdade é inquestionável: sua vulva estava à mostra. E qual a razão de tantos risos a partir da visão de uma vulva, essa parte obscena do corpo feminino que carrega a insuportável verdade de ser a origem da humanidade?   

A verdade da vulva é avessa ao dogmatismo. Ela mostra algo na superfície, mas encobre uma profundidade. Ela não se desvela facilmente. Ela traz enigmas, incertezas, paradoxos. Ela carrega em si uma perspectiva sobre a humanidade que, longe de ser explicada em certezas, seria possivelmente mais contemplada por uma ideia de vir a ser.   

Babi, a partir da exibição de sua vulva, talvez tenha lembrado Dona Ceres da possibilidade de se opor, de desafiar verdades entendidas como absolutas, tal como a do violento patriarcado. Ela era, afinal, uma vulva exibida que se contrapunha às vulvas invisibilizadas e amaldiçoadas pela sociedade. A vulva de Babi, a partir de seus lábios em movimento, assim, falava e rugia, deslocava perspectivas.   

“Vocês conheciam essa história? Alguém aqui já ouviu falar dessa Deusa muito antiga, Deusa Baubo, que tinha uma vulva que era uma boca? Alguém aqui já ouviu a voz de uma Deusa Vulva? Alguém já ouviu um grito, uma risada, uma praga, uma prece de vulva? É que a vulva andou calada, né? Calaram a deusa por medo de que? Esse medo de xereca, de xoxota, de xana, de buceta, de vagina, o medo da vulva é um medo do escuro, é? Do pântano, do abismo? É medo de sangue, da baba, do cheiro? Medo das pequenas mortes ou dos grandes nascimentos? E por que? Por que? Se todo mundo e cada um aqui é filho da vulva? Homem, mulher, o que mais houver, todos filhos da vulva!” (Alice Stefania Curi)

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Política e Sociedade

Palavras-chave: Baubo, vulva, mulher, feminino

Imagem: Estátua de Baubo, Freud Museum

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Tags: Baubo | feminino | mulher | vulva
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