Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
No Carnaval de BH, a vocação pra folia desembarca na estação
Ana Carolina Alcici – SPRJ
Apesar de hoje fazer minha formação na Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, sou nascida, criada e moradora de Belo Horizonte, e fiquei muito feliz com o convite para falar sobre o Carnaval da nossa cidade.
Lendo os textos já publicados aqui no OP, que tratam das experiências de outros lugares, vi que elas possuíam um traço em comum: a importância da ocupação e subversão dos espaços públicos; e a história do ressurgimento do nosso Carnaval ilustra este aspecto de maneira quase didática.
A festa já acontecia em Belo Horizonte desde a sua fundação, no final do século XIX, e se manteve presente ao longo de todo o século XX, passando por uma série de transformações em seus modos de brincar. Contudo, os festejos foram progressivamente perdendo dimensão e importância em um processo que culminou na década de 1990, de forma que praticamente não foram realizados desfiles oficiais entre 1989 e 2003.
Como uma pessoa que cresceu na década de 90, me lembro bem que a cidade ficava deserta, silenciosa, quase uma cidade fantasma. Os jovens iam para as festas das cidades históricas, principalmente Ouro Preto e Diamantina, e as famílias iam para o litoral do Espírito Santo ou Rio de Janeiro. Como eu não fazia nem uma coisa nem outra, meu contato com o Carnaval se restringia a assistir alguns trechos dos desfiles das Escolas de Samba, e acompanhar a apuração na Quarta-feira de Cinzas, que para mim era um espetáculo mais fascinante que os desfiles. No mais, era um feriado como qualquer outro.
Voltando ao renascimento do Carnaval, em dezembro de 2009, um decreto do então prefeito Marcio Lacerda proibiu a realização de eventos de qualquer natureza na Praça da Estação (praça localizada no Centro da cidade, conhecido palco de eventos e manifestações culturais). A resposta veio logo em seguida, com o movimento conhecido como “Praia da Estação”. Articulado pela internet, a “Praia da Estação” propôs uma nova forma de manifestação política da sociedade civil, transformando a cidade sem mar em um verdadeiro litoral, no qual os participantes em trajes de banho, vários deles com instrumentos, faziam da festa e da música uma nova forma de protesto. Nas semanas seguintes o número de pessoas nas ruas só aumentou, e quando o decreto foi revogado, em maio de 2010, o “estrago” estava feito. A Praia da Estação havia se tornado um bloco carnavalesco e inspirado vários outros; o Carnaval nunca mais seria o mesmo.
A chegada de milhares de foliões ano após ano não foi bem recebida pelas autoridades no início. Havia uma disputa jurídica (e obviamente ideológica), e tentou-se dar um fim, seja pelo tribunal ou pelo cassetete, com aquela bagunça toda. Houve ameaças a estabelecimentos, aos idealizadores dos blocos, episódios em que a PM utilizou bombas de gás para dispersar a multidão, etc. Contudo, nenhuma dessas medidas oficiais foi suficiente para conter o renovado desejo dos belo-horizontinos. Assim, a cada ano, novos grupos iam sendo criados, inspirados e incentivados pelo sucesso dos Carnavais anteriores, e a incipiente fama do carnaval da capital mineira começou a seduzir também moradores de outras cidades e estados do Brasil.
Muito se dizia que a cidade não tinha vocação para a folia, mas a semente caiu em um solo fértil, floresceu e se espalhou de forma tão rápida que em pouco mais de uma década fomos de centenas de pessoas em uma praça para uma expectativa de 5 milhões de foliões em 2024. O tempo passou, e o que no começo era reprimido, hoje se consagrou, foi capitalizado e, muitas vezes, esbarra entre o ser e fazer independente e a necessidade de infraestrutura e recursos. A cada ano, novos blocos, mais turistas e mais pessoas querem pertencer à festa. As baterias aumentam, as demandas se modificam e a própria experiência é alterada.
Falando da minha experiência, sempre fui apaixonada pela minha cidade, e se, por um lado, o movimento de ocupação do espaço público só consolidou e aprofundou um sentimento que já existia, por outro, me apresentou um universo que eu não conhecia, e do qual eu não me imaginava pertencer. Eu já amava BH, mas acho que aprendi a amar o Brasil, não aquele dos patriotas vestidos de verde e amarelo, mas o Brasil furta-cor da Timbalada, de Caetano, do Olodum, do axé, do samba, da cultura, da dança, do povo. Estava tudo ali, disponível, na rua, ao alcance das mãos, dos pés, da boca, foi um banquete!
Posso dizer com tranquilidade que, nos últimos dez anos, boa parte das minhas melhores lembranças está ligada ao Carnaval, não só aos quatro dias de festa, mas toda a preparação para o evento, que, para mim, começava com semanas de antecedência.
Meu primeiro Carnaval foi em 2015, e minha mãe faleceu em 2018. Durante esses três anos era com ela, uma artista e uma das pessoas mais criativas que eu já conheci, que eu preparava minhas fantasias. Esta era talvez a época em que passávamos mais tempo juntas, e todo ano quando eu retiro a sacola de adereços do armário é impossível não me lembrar dela, é o começo da minha celebração. País, cidade, mãe, afeto, alegria, encontro, gratidão. Sem negar as contradições e problemas, são essas palavras que eu escolho hoje. Devo estar sedenta de esperança, assim como a cidade estava sedenta de Carnaval.
Finalizo com um trecho da poesia “A extraordinária aventura vivida por Vladimir Maiakóvski no verão na Datcha” do poeta russo Vladimir Maiakóvski, que inspirou o nome e o hino de um dos maiores blocos da cidade, o “Então, Brilha!”. Que a potência criativa seja luz em tempos de trevas.
“Brilhar para sempre,
brilhar como um farol,
brilhar com brilho eterno.
Gente é pra brilhar
que tudo mais vá para o inferno.
Este é o meu slogan
e o do sol.”
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Imagem: PRAÇA LIVRE BH, 2010 – vídeo, citada por Paola Lisboa Côdo Dias na dissertação de mestrado “Sob a lente do espaço vivido: a apropriação das ruas pelos blocos de carnaval na Belo Horizonte contemporânea.”
Categoria: Cultura; Política e Sociedade
Palavras-chave: Carnaval, Belo Horizonte, cultura, popular, blocos de Carnaval, resistência
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