Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Essa coisa acesa chamada Carnaval de rua
Silvana Barros (SPFOR)
Assistindo à passagem dos blocos que saem às ruas da Praia de Iracema, em Fortaleza, no pré-carnaval, me encanto com a artesania, a alegria e a leveza dos blocos e, contagiada por essa força que movimenta e aglutina tantas pessoas na brincadeira do prazer, da alteridade e da diversidade, me junto ao cortejo. Afinal, “eu quero o bloco do prazer, e quem não vai querer?”
“Bloco do prazer”, a música conhecida na interpretação de Gal Costa, é de autoria do compositor, poeta, ilustrador, arquiteto e urbanista cearense Fausto Nilo*, homenageado do ciclo carnavalesco de Fortaleza em 2024.
A música de Fausto Nilo, bem como seus projetos arquitetônicos, apontam para a ocupação espontânea das cidades e para o equilíbrio entre ambiente e cultura. Como urbanista, Fausto afirma que o desafio das grandes cidades é encontrar uma forma possível de comunidade, de convivência e produção de valores, para termos a condição de fazer uso compartilhado dos espaços urbanos.
O jovem libertário veio de Quixeramobim, interior do Ceará. Apaixonado pela música e pela cidade, declara que teve a sorte de viver a rua, onde aprendeu a brincar com a arquitetura das palavras e sonoridades. Dessa forma, faz, como ele diz, as melodias e as cidades cantarem: “Felicidade é uma cidade pequenina, é uma casinha, é uma colina, qualquer lugar que se ilumina, quando a gente quer amar…”
Fausto Nilo sonha e canta o projeto de cidades viáveis, justas, com equidade de acessos e com a base natural bem relacionada com os artefatos.
Nesse sentido, me pergunto se a aposta política e poética dos blocos de rua, de respeito às singularidades expressas na pulsação dos corpos e no uso das fantasias e adereços, pode ser compreendida como um modelo viável e inclusivo de ocupação do espaço público; e se a potência dos afetos, da alegria, da imaginação, da sexualidade e da sensorialidade dos brincantes pode ser lida como uma corporificação de Eros ocupando a cidade.
A cultura carnavalesca dos cortejos, a renovação e/ou resgate de tradições através de marchinhas colocam a música e a arte popular em cena, revelando a comunhão entre festa e engajamento, relacionada à noção de ativismo musical, sendo uma expressão estética livre e irreverente que a muitos ainda amedronta.
As cidades comportam, sem repressão, tamanho frenesi e transgressão?
Conseguem lidar com pessoas cantando e dançando nas ruas, mobilizadas por essa coisa acesa que se manifesta na efervescência dos corpos, numa espécie de catarse que dá ao povo uma sensação de pertencimento e de ocupação da cidade?
Porém o crescimento da pulsão popular nas ruas acarretou novas demandas por políticas públicas que remodelaram a folia. O boom do carnaval de rua em Fortaleza nos últimos vinte anos gerou problemas, de várias ordens (financeiras, sociais, sanitárias, segurança), difíceis de manejar, e a prefeitura, enquanto órgão regulador, precisou interferir com exigências, regras e delimitação do percurso dos brincantes pelas ruas.
Blocos como o “Sanatório Geral”, que levou cor e alegria às ruas do Bairro Benfica, entre os anos 2006 a 2016, sem a participação de patrocinadores, não suportou essas pressões e encerrou sua atividade por impossibilidade de seguir com a liberdade e a alegria que teciam sua natureza.
Na história contada por um organizador, o bloco nasceu a partir dos desejos de uma geração que festejava o carnaval nas ruas e viveu uma infância livre e criativa. O bloco dava corpo e cor ao imaginário de deixar viver o que cada um é, bem com reverenciava as manifestações culturais do nosso povo, entrelaçando festas do interior ao interior de cada um de nós.
Na festa do carnaval, vemos alguns blocos tentando ser resistência cultural, em meio a outros cada vez mais homogeneizados, menos irreverentes e expostos a exigências de empresas privadas. Será que os blocos de rua, livres e artesanais, manifestações de Eros, sobreviverão à institucionalização e regulação do carnaval?
Entre nostalgia e esperança, finalizo esse ensaio com a aposta de que o carnaval seguirá dando corpo a Eros, ocupando a cidade numa comunhão do popular, do profano e do estético.
Conversando com alguns foliões-organizadores de blocos, soube de grupos que resistem, driblam a rigidez e criam novos caminhos, como os blocos de ano único, que têm o orçamento rateado entre amigos e foliões para sair só por um ano e possuem uso irrestrito da criatividade e da alegria.
Como o poeta urbanista que sonha e desenha uma cidade sustentável e democrática, torço para que o carnaval siga aceso como cortejo da liberdade, da subversão e do prazer.
(*) Fausto Nilo é autor de canções que também fizeram sucesso nas vozes de Fagner, Ney Matogrosso, Nara Leão, Moraes Moreira, Amelinha, Chico Buarque e Caetano Veloso.
Em mais de 40 anos de carreira, Fausto Nilo acumula mais de 400 músicas gravadas, entre elas, canções que se consagraram como clássicos da música popular brasileira, a exemplo de “Meninas do Brasil”, “Amor nas Estrelas”, “Coisa Acesa”, “Pão e Poesia”, “Zanzibar”, “Bloco do Prazer”, “Pedras que cantam” e “Eu também quero beijar”.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Cultura
Palavras-chave: carnaval, Fausto Nilo, blocos de pré-carnaval, cultura popular, sustentabilidade.
Imagem: Bloco Solto na Buraqueira, fotografia de Johnnathan Albano
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