Observatório Psicanalítico OP 463/2024 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Comentários alados, aqueles que voam e semeiam não se sabe onde, nem quando, e se florescerão.

Miguel Sayad – SBPRJ

Comentários sobre “Carthago delenda est” de Adriana Augusta. 31 de dezembro de 2023. Petrópolis. RJ

Caríssima Adriana,

Todos do OP.

Adriana, comento pela via arriscada, mesmo entre nós psicanalistas, da associação livre e da atenção flutuante, e, portanto, das palavras que flutuam no ar que nos envolve.

Desde a minha contribuição ao OP, em outubro de 2023, a perdição e as trevas crescem num ritmo demoníaco. A Pulsão de destruição ganhou força, e “o Anjo da Destruição” parece ter tomado as rédeas na “Terra Prometida”: a grande ilusão, a fonte e origem do que denomino Patriarcado Maligno.

Precisei me retirar do mundo, do mundo psicanalítico, em busca do vazio e da de-saturação do espírito e de ideias.

A tristeza imensa impulsionou este movimento para o espaço vazio.

Assim passei o Natal, um dos mais tristes de minha vida. Passei o Natal com as crianças martirizadas e suas mães, em Gaza, e com a enorme tristeza não só de ver no que Israel se tornou, como a pouca manifestação da comunidade psicanalítica associada à IPA.

1 – “É possível a paz para o ser humano?”

Não, a paz não é possível!

Sim, é possível em comunidades apartadas desse mundo suprematista e gerido pelo Patriarcado Maligno. São circuitos de pessoas que compartilham a mesma visão de paz e bem-estar e que se encontram cada vez mais em variados locais desse novo mundo interconectado.

2 – A superação do narcisismo “individualizante”, sim, acho que é possível, especialmente para os psicanalistas.

A vida, inclusive a vida boa, é uma constante administração e transformação de nosso impulso violento, nos homens claramente o de bater, matar, se sobrepor pela força física. Vejam as infantarias, o afã e orgulho dos jovens para partirem para a guerra.

O nosso principal meio de elaboração e transformação dessa pulsão, no caso, pulsão de matar, tanto nos casos individuais como no caos social, são as nossas palavras públicas, que na repercussão e respostas no Outro, nos leva às transformações interiores.

3 – Já não estamos nos tempos de Carthago, muito evoluiu nosso pensamento e espírito, e ainda mais somos tributários de nossa formação e análises psicanalíticas, assim evoluiu muito o nosso conhecimento e a história dos textos bíblicos.

O pensamento psicanalítico, suas teorias, não são, ou não devem ser, palavras ao vento, no mundo das abstrações intelectuais e acadêmicas apenas, elas têm sentido e razão de ser ao serem encarnadas nas realidades do momento – seja na clínica individual, seja nas intervenções nos dramas sociais.

Estamos frente a um momento de cisão e transformação do sentido da história contemporânea que modificará nossas relações com o mundo e entre todos nós.

Esta cisão e transformação se dá sob o signo da Pulsão de Matar e da ideologia de pureza racial e religiosa. Uma loucura bíblica renovada sob o signo e como pretexto da ganância, intolerância e conquista de terras e recursos financeiros abundantes.

Não é difícil notarmos a clareza em que o Velho Testamento expõe o valor e sucesso do Terror, patrocinado por Deus, e o morticínio de crianças como meio de vitória, conquista e estabelecimento de um povo escolhido. Esse texto é notoriamente a gênese histórica, como texto, não como fato, do Patriarcado Maligno, aquele que é fundado na fruição e festejo erótico do poder e prazer na matança perpetrada pelo “senhor dos exércitos”.

Acho mesmo que é um dos fatores, e pretexto importante, que sustentaram o desenvolvimento colonial e religioso inquisitório europeu, e que se reconhece hoje, amplamente, como movimento colonialista opressor e exterminador de populações locais, porém, ainda hoje em dia, amplamente sustentado pelas comunidades supremacistas brancas e que compõem o espectro do que chamamos extrema direita.

4 – “Vamos continuar na negação alucinatória da morte?”

Ora, para os de espírito vulgar e fútil ou para os que se dedicam narcisicamente à libertação do corpo e do mundo e que mal tomam conhecimento das tragédias no mundo, assim continuará um estilo de vida. De ser feliz? De se libertar das dores de ser vivo? Não sabemos.

Mas sabemos que esse destino aviltaria qualquer psicanalista, mais ainda aqueles dedicados às abordagens pela psicanálise dos dramas e violências sociais da nossa vida contemporânea.

5 – Como dizia George Orwell “estamos em uma idade em que o presente controla o passado. Altera-se a história para servir aos interesses de poucos grupos.”

Pois sim, esse movimento é clássico, e não apenas do tempo de Orwell e é amplamente reconhecido pelos estudos de ciências sociais contemporâneas, e o exemplo paradigmático é justamente os escritos dos textos bíblicos, especialmente os livros do Pentateuco.

Aqui escrevo, em um limiar, à beira de um precipício junto com Humpty Dumpty, no limiar de um novo mundo a ser inaugurado pós-destruição de Gaza e a matança de suas crianças e mulheres.

Escrevo para dar meu testemunho, oferecer meu testemunho, e se for o caso ouvir novas e, ou diferentes vozes, pois é na troca de conhecimento e pontos de vista, que nos tornamos melhores pessoas.

Considero o silêncio dos psicanalistas sobre se apoiam ou se opõem e condenam o massacre em Gaza, perpetrado por Israel, como uma surpresa indigna da Psicanálise, tanto como movimento, quanto como ciência do conhecimento do inconsciente e suas organizações sociais. As palavras são o que nos unem e sustentam a ética psicanalítica e mesmo a própria Psicanálise.

PS.:

“Imagine que o destino da humanidade esteja em suas mãos e que, para tornar as pessoas definitivamente felizes, paz e tranquilidade sejam indispensáveis, mesmo que isso envolva torturar uma criança e fundamentar a felicidade futura sobre suas lágrimas. Você concordaria, nestas condições, em edificar semelhante felicidade?” (pergunta-nos Dostoiévski em Os Irmãos Karamázov).

Entretanto,

“Sobre meio milhão de crianças mortas pelos Estados Unidos no Iraque, Madeleine Albright, então embaixadora norte-americana na ONU, não negou a acusação, admitindo ter sido ‘uma escolha difícil de fazer’. Mas justificou-a: ‘Achamos que era um preço que valia ser pago.'” (em Zygmund Bauman – “Sobre a Dificuldade de Amar o Próximo”).

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Política e Sociedade 

Palavras-chave: pulsão de matar, patriarcado maligno, palavra psicanalítica, Gaza, Israel

Imagem: foto do arquivo pessoal de Miguel Sayad 

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Tags: Gaza | Israel | palavra psicanalítica | patriarcado maligno | pulsão de matar
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