Observatório Psicanalítico – OP 456/2023

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Era uma vez em Ipanema 

Marina Kon Bilenky – SBPSP

“Será que esta minha estúpida retórica

Terá que soar, terá que se ouvir

Por mais zil anos” (Caetano Veloso, Podres Poderes)

Era um belo sábado ensolarado. Muita gente resolveu sair de casa, dar um mergulho no mar de Ipanema, caminhar ou simplesmente contemplar a beleza da paisagem. Idosos passeavam pela orla, jovens agrupavam-se para curtir o dia, pessoas corriam, levavam seus cachorros para passear, crianças andavam de bicicleta, faziam castelos de areia. Às 10 horas da manhã, centenas de membros do Comando Vermelho desceram os morros encapuzados e armados de metralhadoras e granadas. Chegavam de parapente, moto, caminhão, a pé. A ordem era matar. Os transeuntes distraídos, quando abriram os olhos, entraram em desespero, seus rostos crispados em expressões de horror e pânico. Os membros da facção atiraram aleatoriamente, jogaram idosos ao chão e pisotearam seus corpos antes de atirar. Violentaram mulheres e meninas que passeavam pela orla.  Foram estupros coletivos efetuados com tanta violência que algumas mulheres tiveram sua pélvis fraturada, outras as pernas. Eles arrastaram as mulheres pelos cabelos exibindo seus corpos ensanguentados e despidos. Atiraram em suas genitálias e deceparam seios que exibiam como troféus. Incendiaram estabelecimentos comerciais e queimaram casas e edifícios com as pessoas dentro. Mataram crianças, jovens, bebês, que foram encontrados esquartejados e degolados. Uma mãe recebeu uma chamada de vídeo de seu filho realizada por um membro da facção e assistiu a maneira como foi torturado e morto. Um pai assistiu a filha ser estuprada. Filhos foram assassinados na frente de seus pais e pais foram assassinados na frente de seus filhos. Os homens encapuzados chegaram ao cúmulo de arrancar um bebê de nove meses de dentro da barriga de uma mulher grávida.

O Comando Vermelho havia planejado o ataque cuidadosamente por dois anos. Eles queriam horrorizar Ipanema, atrair a atenção do mundo e provocar uma reação exagerada do governo do Rio de Janeiro. Para atingir seus objetivos, transmitiram as imagens do massacre ao vivo para o mundo todo assistir. 

Ao cabo de 6 horas, Ipanema estava destruída. A praia estava cheia de corpos incinerados, irreconhecíveis. O bairro arrasado com mortos espalhados pelas ruas, por onde corria um rio de sangue. Na saída, os terroristas levaram 250 reféns, entre eles, homens, crianças, bebês, mulheres, jovens e idosos. Levaram até uma mulher que estava no hospital fazendo quimioterapia. Quando esses reféns chegaram ao morro, foram vaiados, cuspidos e espancados. O ódio estava à solta. 

Foram dois dias de choque e silêncio no Rio, no Brasil e no mundo.

Ao fim desse tempo, o prefeito declarou: “Os membros do Comando Vermelho são verdadeiros animais. Vamos acabar com eles”. E prometeu que não mediria esforços da polícia e do exército até que a facção criminosa fosse dizimada.

Uma semana depois, o exército começou a invadir o território dirigido pelo Comando Vermelho. Avisaram os habitantes da Rocinha para evacuarem para o Complexo do Alemão, pois iniciariam o ataque por lá. Foi uma tragédia. Milhares de pessoas tiveram que sair de suas casas enfrentando necessidades, sem água, sem comida, sem ter onde dormir. O exército estava determinado a destruir todos os escritórios do CV, mesmo sabendo que estavam localizados propositadamente próximos a hospitais, escolas e igrejas, em meio à favela. Assim como a organização criminosa usava os habitantes da Rocinha como escudos humanos, também a polícia carioca pensava nas vítimas, constituída, em sua maioria, por pessoas pobres e pretas, como dano colateral, necessário para que atingisse seu objetivo. Essa atitude custaria a reputação do governo do Rio de Janeiro diante da opinião pública, como já havia sido antecipado pelos idealizadores do massacre. 

Enquanto isso, os habitantes de Ipanema e de bairros próximos estavam arrasados. Sessenta por cento da população sofreu ao menos uma perda de pessoa afetivamente significativa. A cidade do Rio não era a mesma, o clima de luto e desespero tomou conta da população, que lutava para sobreviver aos traumas e à dor causados por aquele dia de terror, que ficaria para sempre gravado em suas mentes e em sua história coletiva.   A população se dividia, muitos queriam vingança, outros queriam fazer de tudo para libertar os reféns, que eram seus pais, filhos, parentes, amigos ou conhecidos. Entre sentimentos de impotência e vontade de vingança ou de paz, todos choravam a morte de músicos, artistas, sociólogos, professores, pessoas que lutaram pelo fim da desigualdade, seus entes queridos.

A notícia da situação do Rio de Janeiro correu o Brasil e o mundo. A violência e a tragédia atraíram a atenção de todos e, para além dos envolvidos, mobilizaram pessoas de todos os continentes. Os cariocas espalhados pelo mundo queriam ser reconhecidos em sua dor, mas a hostilidade em relação a eles crescia e prevalecia o julgamento moral sobre a resposta do governo. De um dia para o outro, o mundo discutia e se tornava especialista nas questões geopolíticas da região do Rio e das favelas, das facções criminosas, da corrupção dos governantes e da desigualdade que predominava na região. Todo mundo se levantou e começou a discutir quem era o culpado pelo conflito. Até cidadãos que pensavam que a capital do Brasil era Buenos Aires entraram na discussão.  Alguns grupos gritavam que o exército deveria acabar com as favelas que funcionavam como sede do Comando Vermelho, que os terroristas deveriam todos ser mortos. Eles estavam cegos de ódio e cheios de desejo de vingança e não podiam ver que não é possível exterminar grupo nenhum. Havia aqueles que defendiam veementemente que a favela deveria avançar até o mar. Basta de privilégios. Que os habitantes de Ipanema sejam todos expulsos ou dizimados. Outros grupos entendiam que todos deveriam ser expulsos, porque afinal, aquilo pertencia mesmo aos povos originários e a eles cabia o direito legítimo de ocupar aquele local. 

A discussão sobre como acabar com a desigualdade e quem tinha o direito de ocupar Ipanema envolveu habitantes de países distantes, que se digladiavam para ver quem tinha razão. Pessoas no Oriente Médio discutiam a respeito do que acontecia no Brasil e esqueceram de olhar para os inúmeros conflitos que aconteciam a sua volta. As redes sociais fervilhavam com discussões sobre quem teria mais direito, quem era mais vítima, quem era mais algoz. Muitos simplesmente ignoraram a existência dos eventos daquele sábado terrível, afinal era mais importante defender suas opiniões. Chegavam a debater quem foi mais desumanizado, quem devia ser humanizado ou se os moradores daquele bairro tão lindo afinal não mereciam sofrer o massacre por serem tão privilegiados. 

Até que três superpotências resolveram se aproveitar do conflito para aumentarem seus poderes de dominação e lançaram bombas de tecnologia avançada. Só não esperavam que o encontro das bombas teria o efeito de espalhar radiação pelo mundo todo e ser absolutamente letal para seres humanos. E assim, a raça humana foi extinta desse planeta. 

Ufa! Já não era sem tempo.

Caro(a) leitor(a), feche os olhos por um instante e imagine que centenas de homens encapuzados e armados estão invadindo as ruas da sua cidade. O dia 7 de outubro aconteceu!

#Pelo fim da guerra

#Pela Paz

#Metoounlessurajew

#Pela legitimação da dor de TODOS os povos

#Pelo fim da arrogância humana

Em tempo, os fatos narrados no início do texto aconteceram de verdade e foram perpetrados pelo Hamas no sul de Israel no dia 7 de outubro de 2023, fato que desencadeou a guerra entre Israel e Hamas. A localização e os detalhes escritos no decorrer da escrita são baseados na imaginação da autora e não têm correspondência com a realidade geopolítica e social do Rio.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Política e Sociedade

Palavras-chave: Arrogância, legitimidade, desumanização, dor, terrorismo 

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Tags: arrogância | desumanização | dor | legitimidade | terrorismo
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