Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Mundos em Colisão
Valton de Miranda Leitão – SPFOR
É absolutamente necessário compreender o mapa geopolítico que está sendo desenhado no mundo. A nova Rota da Seda, capitaneada por China e Rússia, deseja ampliar os BRICS como gigantesco mercado, enquanto os EUA, império em declínio, com seus aliados europeus, também querem sustentar o domínio do Banco e do Ouro no mercado do gás e do petróleo. O projeto euro-asiático da Ucrânia comandado pela OTAN está sendo substituído pelo domínio do gás que existe na costa marítima de Gaza, enquanto o contencioso Venezuela versus Guiana tem como fulcro o petróleo de alta qualidade existente no chamado território de Essequibo, que a Venezuela reclama como seu. Não é por acaso que o maior porta aviões norte americano se encontra há muito estacionado em Tel Aviv, enquanto aviões de caça americanos sobrevoam a região guianense onde funcionam as petroleiras da Shell e Chevron. Neste pano de fundo histórico-social concreto é que se movimentam as novas formas de subjetivação nas diversas culturas da fé, do fanatismo e da guerra.
Quando discuti há anos com outros intelectuais brasileiros, em São José do Rio Pardo e em Salvador, o grandioso livro de Euclides da Cunha, “Os Sertões”, as opiniões se dividiram entre os que queriam fazer a exegese da obra euclidiana e aqueles que desejavam discutir a essência da Guerra de Canudos. Naquela ocasião, nós, os chamados conselheiristas, dizíamos que a matança de mais de 30.000 camponeses, seguidores de Antonio Conselheiro, moradores do Arraial de Canudos, fora um belo exemplo de como a guerra tinha o objetivo político de calar a voz do povo com canhões krup e metralhadoras Manlich, de fabricação alemã. O encantador livro de Sándor Márai, “Veredito em Canudos”, demonstra como fé e fanatismo se encontram em ambos os lados das trincheiras.
Antonio Rezende, fazendo uma preciosa leitura de Bion, mostra como os modelos são úteis para a compreensão psicanalítica e Paulo Cesar Sandler, com um estudo não menos importante, demonstra como os grupos tendem a funcionar em alucinose compartilhada. O primeiro, traz os modelos da mãe-seio e da nutrição, enquanto o segundo, apresenta no seu estudo, O Quarto Pressuposto de Bion, as típicas fraturas grupais. Freud utilizou o modelo mitológico de Édipo e, nesse texto, uso o modelo da Guerra de Canudos com sua tresloucada matança, no interior da Bahia. Não conheço nenhuma guerra justa e tampouco santa, mesmo a que utilizou o emblema do cristianismo: in hoc signo vinces. As guerras de religião durante os séculos XVI e XVII que culminaram com a matança da Noite de São Bartolomeu, em Paris, mostra bem como Bion, na trilha de Freud, compreendeu o narcisismo da pequena diferença.
A Ditadura Militar brasileira nos anos 1960/1970, tanto quanto as de outros países latino-americanos, perseguiu, torturou e matou os “comunistas” que, como eu, eram tidos como subversores da Ordem e da Lei. O cearense Frei Tito de Alencar foi barbaramente torturado pelo delegado Fleury e pelo Capitão Albernaz. Escrevi em outro texto que torturadores como Brilhante Ustra não querem obter informações, mas calar a voz e silenciar os que contestam a desigualdade social.
Na famosa correspondência entre Freud e Einstein está clara para mim a contraposição entre o realista e o pacifista, entre o descobridor da pulsão destrutiva no inconsciente e o cientista que acreditava em uma ciência ideal e neutra. A primeira guerra mundial foi chamada de guerra dos químicos, a segunda de guerra dos físicos e agora, às portas da terceira, como chamaríamos a pugna que envolve potências nucleares que comandam robôs e algoritmos? Se Guy Debord fosse vivo provavelmente diria que Pluto comanda o espetáculo.
Os sistemas midiáticos, seja no Oriente ou no Ocidente, entram nas mentes e corações das pessoas, influenciando os corpos e o comportamento de massas regredidas e acríticas, como aconteceu agora na Argentina. A extrema direita, tanto no plano objetivo quanto subjetivo, trabalha claramente com a desintrincação pulsional, estimulando o ódio ao inimigo.
A psicanálise do conflito de antes, aparentemente se transferiu para os corpos e os comportamentos que passam ao ato diante do ego indefeso. O conflito neurótico de outrora é agora vivido com ataques sistemáticos ao próprio corpo, enquanto o pensamento reflexivo cede lugar ao ato impensado. Quando Freud escreveu, “Uma criança é espancada”, não poderia supor que todas as crianças do mundo estão em perigo, quando uma criança israelense ou palestina é assassinada. Finalmente, lembro Sartre em Deus e o Diabo: que a dor na violência guerreira não é quantificável.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Política e Sociedade
Palavras-chave: fé, fanatismo, guerra, geopolítica
Imagem: Con razón o sin ella, Goya. Desastres de la guerra (estampas y dibujos, 1810-1815)
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