Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Para não dizer que não falei das flores
Helena Cunha Di Ciero – SBPSP
Rafaela Delgani – SBPdePA
A Feira Literária de Paraty, também conhecida como FLIP, é um dos eventos mais importantes e aguardados do cenário literário brasileiro. Realizada anualmente na encantadora cidade histórica de Paraty, no litoral do estado do Rio de Janeiro, a FLIP reúne escritores tanto renomados quanto estreantes, artistas e amantes da literatura de todo o país e do mundo. Seu principal objetivo é promover o encontro entre autores e leitores, proporcionando um espaço de reflexão, debate e celebração da literatura.
Durante os dias do evento, as ruas do vilarejo são tomadas por uma atmosfera literária única, com diversas atividades acontecendo simultaneamente. Hemingway dizia que Paris era como uma festa móvel que carregamos dentro de nós, ainda que estejamos em outros lugares. A FLIP tem essa mesma essência, permanecendo conosco por um tempo mesmo depois de encerrada, como um bom livro guardado na prateleira de honra de nossa casa da memória. Paraty também sabe ser uma festa.
Nem o apagão, devido às chuvas e ao novo normal climático pré-apocalíptico, nem as filas enormes com os pés encharcados, nem o calor acima da média desanimaram os participantes da festa. As ruelas históricas de pedra estavam abarrotadas de pessoas interessadas em livros, algo notável em um país onde a média de livros lidos por ano é baixíssima em comparação a outros países. Dizem as pesquisas que por aqui lemos menos que na Turquia, Egito ou Venezuela, e que no topo do ranking estão os Indianos e Chineses. De todo modo, em Paraty entramos numa espécie de portal, onde os livros e escritores viram, respectivamente, objeto de desejo e celebridades.
Dava vontade de sair gritando: “Extra, extra! Não só de rede social a contemporaneidade se alimenta! Extra – extra, ainda há esperança, ainda se fala de poesia! Extra- extra! A inteligência artificial não engoliu todas as metáforas! Sobrou para a humanidade uma frestinha de luz.”
No palco principal, um painel colorido, com três palavras soltas: palavra, travessia e loucura. São as palavras que nos salvam do abismo, e isso tanto a psicanálise quanto a literatura têm em comum, caminham juntas. Palavras são ponte, travessia, costura, elaboração. Freud se valeu dos poetas e escritores para formular suas teorias, e sabemos que na arte encontramos uma via de acesso ao inconsciente.
A homenageada deste ano foi a escritora Patrícia Galvão, mais conhecida como Pagu, uma mulher avançadíssima para seu tempo. Atuou no movimento modernista, feminista e antifascista. Foi uma importante escritora, poetisa, jornalista e militante política brasileira. Por sua atividade política vinculada ao partido comunista, foi presa diversas vezes, a primeira mulher a ser presa por motivos políticos no Brasil. Além de sua militância, também deixou um importante legado literário. Escreveu diversos poemas, contos e romances, sendo um dos principais nomes do surrealismo no Brasil. Suas obras mais conhecidas incluem “Parque Industrial”, “A Famosa Revista” e “Dicionário de Poesia”.
Sabemos que é recente a participação mais numerosa e efetiva das mulheres na vida pública. Às mulheres, historicamente, foi barrada a possibilidade de ocuparem lugares sociais para além da vida doméstica ou de trabalhos subalternos. Portanto, homenagear uma pioneira como Pagu é um tanto significativo. Na cena literária, entretanto, ocupam cada vez mais um lugar de destaque. “Mulheres que escrevem sobre si é um ato político”, declarou Natália Timermam em uma mesa sobre autoficção. A importância das mulheres se narrarem e se verem narradas é fundamental.
No divã, narramos nosso romance familiar, criamos nossa autoficção e, com sorte, descobrimos outros destinos para a neurose. Narrar sobre si ou ler-se na narrativa de alguém tem o poder de cura na medida em que palavras são encontradas, onde antes havia apenas uma intensidade não representada. Talvez, por isso, hoje mulheres têm escrito tanto sobre si. Além de um ato político, há uma demanda reprimida que se abre num vôo livre.
No ano passado, a FLIP recebeu a escritora vencedora do Nobel de literatura Annie Ernaux, uma expoente na narrativa de autoficção. Obra composta de uma escrita direta, simples e profundamente literária. Uma escrita sem purpurina, que ela define como uma escrita-faca. Annie compartilha com assombrosa honestidade experiências pessoais. Um de seus livros mais destacados é “O Acontecimento”. Neste, a autora conta sobre um aborto ilegal realizado quando era uma jovem estudante. Nessa edição da FLIP esteve presente a escritora francesa Colombe Schneck conversando sobre seu livro “Dezessete Anos”, no qual conta sobre um aborto realizado quando era adolescente. Colombe começa o livro agradecendo a conterrânea Anne Ernaux pela coragem de ter escrito sobre um tema tão desagradável, abrindo caminhos para que hoje seja possível escrever com mais liberdade sobre esse tabu. Nas duas narrativas conseguimos sentir a magnitude traumática de tais acontecimentos. Como diz Ernaux: Escrevo para vingar minha raça. Suas palavras traduzem vozes femininas há tanto tempo silenciadas, que nos atravessam de maneira perene e que só poderiam ter sido escritas por mulheres.
Penso em uma analisanda que atendi recentemente e me conta do aborto que fez na adolescência. Uma cena viva, triste, que não sai da minha cabeça por dias. Tenho o ímpeto de comprar o livro de Colombe para ela. Imagino que talvez ler essa obra possa ser complementar às sessões. A solidão experimentada pela analisanda pode, quem sabe, encontrar conforto nas palavras de outra mulher. Faríamos assim uma rede, de quem escreve, de quem conta de si, de quem é escutada. Mulheres que, de diferentes formas, estariam juntas. Uma colcha de retalho de palavras, que acolhe, aconchega e dá contorno. Na dúvida, compro para mim o livro, para que Colombe atue como uma outra perna do famoso tripé. Lembro-me de ouvir de meu pai quando criança que quem anda com um poema no bolso não anda só.
Leda Cartum falou na sua mesa sobre um livro que leu e que a tocou, que falava sobre o milagre da simultaneidade. Essa ideia de que tudo está acontecendo ao mesmo tempo, enquanto estamos vivos, nada de fato está perdido, enquanto houver o milagre da simultaneidade. Para a autora, a história acontece o tempo todo, pois somos histórias e dentro de nós carregamos nossa ancestralidade. E por isso, temos uma responsabilidade. Responsabilidade lindamente apontada por Nora Krug, autora alemã, que traz a seguinte frase na mesa principal: “Sim, nosso país tem uma culpa histórica que necessita ser considerada. Mas a culpa não traz nada além de paralisia, já a responsabilidade sim, essa pode trazer alguma reflexão. A culpa só traz vergonha. Escrevo para pensar.”
Escrever é confiar na volta da primavera, é uma forma de desabrochar novas palavras, sonhos e ideias. Alimenta, enaltece, traz reflexão. E ao ler, contemplamos outras paisagens.
Certa vez perguntaram a Matisse o motivo de ele pintar flores no meio da Guerra, e eis que ele responde: Alguém precisa se lembrar das flores. Estar na FLIP de 2023 teve esse espírito. Há algo que ainda floresce, como nos lembra Drummond, é possível nascer flores no asfalto e furar o tédio, o nojo e o ódio.
No meio dessas tristes guerras, desse clima apocalíptico, a FLIP aconteceu. E talvez siga acontecendo dentro de nós, tamanho encantamento produzido. Na nossa particular experiência, a FLIP este ano teve um sabor especial. Nós, as autoras desse texto, também estivemos entre as escritoras da festa, autografando nossos livros, “Menina em Claro” e “Instantes de Dentro”. Duas psicanalistas que escrevem, que há pouco se conheceram e descobriram tanto em comum. A vida é mesmo a arte do encontro, e a amizade é das melhores coisas que podem acontecer. Faz parte da tal história da simultaneidade.
A foto fica como testemunha ocular desses dias da feira, e a legenda que acompanha é um trecho do livro Menina em Claro :
“ saímos as duas contentes com quem a gente podia ser , pelo menos naquela semana, enquanto a feira enfeitava a cidade”
Como diz Matilde Campilho: “a arte não salva o mundo, mas salva o minuto”. Enquanto houver páginas a serem preenchidas, talvez estejamos a salvo, ainda que por alguns minutos. Já a amizade , essa salva uma vida toda.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Palavras-chave: literatura , autobiografia, FLIP, psicanálise, escritores
Categoria: Cultura
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