Observatório Psicanalítico – OP 449/2023 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

É preciso falar sobre antissemitismo

Fernanda Soibelman Kilinski – SBPdePA

Precisamos falar sobre antissemitismo estrutural. Os três semestres em que passei estudando racismo estrutural e psicanálise na Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre vieram a mim com toda força nas últimas semanas. Me vi no lugar da mãe negra que senta pela primeira vez com o filho para explicar que ele é negro e quais as implicações disso. A mãe judia também passa, inevitavelmente, por esse momento em que precisa explicar pro filho porque há pessoas que querem vê-lo morto, ou até torturado da forma mais cruel.

Diferentemente do mito que persegue a comunidade negra, que é um mito de degradação e inferiorização, o mito que persegue a comunidade judaica é o mito de um povo poderoso, rico e conspirador, o que faz com que o judeu não possa, muitas vezes, ter seu lugar de vítima reconhecido. Nós judeus estamos na mais absurda tarefa de defender os motivos pelos quais não merecíamos ter sido massacrados e ter nossas famílias sequestradas, o que me leva a pensar que o único judeu que desperta solidariedade é o judeu dos campos de concentração nazistas. Ou nem ele, já que temos visto uma enxurrada de comentários na internet dizendo que Hitler estava certo. Como explicar a desinformação veiculada pela mídia, que culpabiliza Israel sem a devida conferência? Eu tenho duas propostas: antissemitismo e propaganda nazista – digna de Goebbels. Há ainda uma terceira possibilidade para os psicanalistas: a desmentida.

A solução do Hamas, defendida por tanta gente, é a solução final. Como dialogar com quem quer apenas sua aniquilação? A propaganda antissemita nas redes e nas ruas é a propaganda que levou a Alemanha nazista a concluir que a morte dos judeus é a única solução para os problemas do mundo. Enquanto nos protestos pró Israel nós cantamos Hatikva (esperança), nos protestos pró Hamas as pessoas gritam “gas the jews” ou “from the river to the sea”, quando todos sabemos que isso significa o genocídio de todos os habitantes de Israel. Isso não seria um apelo ao genocídio ou limpeza étnica de que tanto acusam Israel? Falando em limpeza étnica, alguém já se perguntou onde está a população judaica que antes vivia nos países árabes? O antissemitismo aumentou em 1200% desde o dia 7 de outubro. Aumentou ou estava apenas silencioso, esperando um pretexto para vir com toda força? O antissemistismo, estrutural que é, nunca morreu e, como o racismo, é algo contra o qual precisamos lutar e nos educar diariamente.

Fui acusada na semana passada de fazer “ativismo seletivo” ao falar de Israel. Essa pessoa que me acusou já me acompanha há algum tempo e sentiu-se confortável em apagar todo meu ativismo nas causas negra, LGBQIAPN+ e feminista. Esse é apenas um dos muitos apagamentos e silenciamentos que os judeus vêm sofrendo, não de hoje. Mas nós decidimos não silenciar. Nunca mais. Decidimos que não permitiremos que  um não-judeu tente nos ensinar o que é antissemitismo e que faça uso do antissionismo para destilar o seu ódio aos judeus. Antissionismo, inclusive, é algo sobre o qual também precisamos falar. A palavra “sionista” passou a ter conotação ofensiva, às vezes até entre judeus. Cabe então um pequeno esclarecimento: sionismo é simplesmente o nome do movimento de autodeterminação do povo judeu. Qualquer pessoa que negue esse direito, está fazendo um apagamento histórico de toda relação dos judeus com aquele território e de toda presença judaica ali, mesmo após a diáspora. Além disso, é incorreto falar de sionismo no singular, já que existiram e existem vários sionismos. Chamar o movimento sionista de “colonialismo” é também negar que o sionismo é um movimento de retorno e é novamente um apagamento histórico, dessa vez do sionismo negro judaico africano. Não estaríamos sendo racistas ao reduzir o movimento sionista ao sionismo de Herzl? Chamar o sionismo de movimento imperialista branco é um duplo racismo com os sionistas africanos – sim, antissemitismo é um tipo de racismo. E é por isso que não podemos nos enganar: antissionismo é antissemitismo. O crescente ódio aos judeus ao redor do mundo não deixa dúvidas, afinal, o problema é Israel ou os judeus? Por que os judeus da diáspora estão sendo atacados pelo que acontece em Israel? 

Lembrar que antissemitismo é um tipo de racismo tem uma enorme importância neste momento, visto que passamos por um fenômeno nomeado por David Baddiel em “Judeus não contam” de “Lei dos Brancos de Schröedinger”, em que a branquitude dos judeus depende da política do observador. Para os supremacistas brancos, os judeus definitivamente são uma outra raça que não a branca; já para os progressistas antirracistas, os judeus não só são brancos como têm um “adicional de branquitude”, pois o judaísmo supostamente vem junto com o privilégio da participação na conspiração mundial de poder e riqueza. Isso tudo, claro, às custas da invisibilização dos judeus negros, pardos, asiáticos, etc.

Certamente os judeus “brancos” compartilham de alguns privilégios da branquitude, mas um desses privilégios seria a garantia de que não serão um povo passível de extermínio. Será que nós podemos dizer isso dos judeus? Os últimos três mil anos respondem essa pergunta. É claro que cada tipo de racismo tem suas especificidades, o objetivo aqui não é igualar o racismo contra negros ao racismo contra judeus, mas é provocar o questionamento do porquê o antissemitismo tem sido colocado sistematicamente de lado e até negado. Como disse Baddiel no livro supracitado, o antissemitismo é um racismo de segunda classe, não tão importante na “hierarquia dos racismos”. Bom, vamos deixar as coisas claras então: nós judeus temos medo de ir ao dentista e ele defender o Hamas, temos medo de usar nossas estrelas de David no pescoço, temos medo de fazer comentários e ser ameaçados, temos medo dos nossos filhos portarem o uniforme da escola judaica, temos medo de que o vizinho repare na mezuzá na nossa porta, temos medo de um novo holocausto, temos medo do pogrom virtual que estamos vivendo na diáspora… Nós temos medo. 

Em uma das trocas de e-mails sobre o tema aqui no OP, um dos colegas respondeu dizendo que falarmos de antissemitismo nesse momento é um “cala a boca” para a crítica que ele queria apresentar. Eu gostaria de perguntar a todos se alguém aqui se sentiria confortável em impedir um colega negro de falar sobre racismo, como ele tentou fazer com os colegas judeus. Dizer a um judeu que ele não pode acusar os ataques antissemitas que estamos sofrendo, ainda que disfarçados de antissionismo, isso sim é um “cala a boca”. Quando um negro fala de racismo, o branco deve simplesmente sentar e escutar. Não cabe ao branco ensinar ao negro o que é racismo. Aparentemente, com o judeu é diferente. Todos se sentem à vontade em ensinar ao judeu o que é antissemitismo e negar completamente a experiência vivida por um judeu. Em outra troca de e-mails, alguém falou criticamente sobre os judeus serem “o povo escolhido”, e tenho percebido em muitos comentários na internet como esse “título” incomoda as pessoas e mexe com sensibilidades. Seria compreensível se não fosse um tanto hipócrita, já que a imensa maioria das religiões se coloca como a única correta, defendendo que todos que não a professam irão para algum tipo de inferno. Não seria isso o mesmo que ser um povo escolhido por Deus? Me intriga também o fato de que aa pessoas que criticam que os judeus sejam considerados tão excepcionais a ponto de serem “os escolhidos” são as mesmas que cobram dos judeus posturas excepcionais, tais como: depois de sermos massacrados, não podemos sequer sentir raiva, como seria o esperado de qualquer outra pessoa, mas devemos imediatamente mandar ajuda humanitária à Faixa de Gaza. Também não podemos nos defender dos ataques do dia 7 e, se nos defendermos, somos os judeus sedentos por sangue dos palestinos, embora a invasão terrestre a Gaza tenha sido adiada por dias para possibilitar a evacuação dos civis –  senão seríamos, novamente judeus sedentos pelo sangue das criancinhas palestinas. Os defensores do cessar-fogo esquecem dos reféns e que Israel segue sendo bombardeada diariamente. Os judeus não são especiais e é justamente isso que queremos que os não-judeus saibam: se nos ferirem, sangramos como qualquer outro povo. Não queremos ser melhores nem piores, queremos o direito de existir, apenas. 

Pois bem, nós não vamos mais nos calar. Nós não vamos mais escutar piadas antissemitas em silêncio, não vamos mais permitir que o mundo aplauda nosso massacre, não vamos mais permitir que apaguem a nossa história, nossas origens e nossa presença em Israel mesmo após a diáspora. Nós vamos reclamar do uso da palavra “judiaria”, vamos lembrar dos apoiadores do Hamas como lembramos dos colaboracionistas.

Os libelos de sangue fomentaram os mais cruéis pogroms contra os judeus na Europa na Idade Média, assim como estamos vendo o incremento das perseguições antissemitas quando afirmam que o exército de Israel mata voluntariamente as crianças palestinas. O mito de que Israel criou o Hamas é mais um mito antissemita com a intenção de desumanizar os judeus e, como disse André Lajst, insinuar que o judeu é tão ruim que criou seu próprio algoz. É algo como culpar a mulher por seu próprio estupro, afinal, ela estava provocando seu estuprador. É bom lembrar que lá atrás o Hamas não era o que é hoje, e que os próprios palestinos hoje o repudiam. Necessário frisar que nenhum israelense está comemorando as mortes em Gaza, não há israelenses distribuindo doces nas ruas como costumam fazer os militantes do Hamas. Pelo contrário, Netanyahu está sendo hostilizado, assim como seus aliados políticos, que estão sendo impedidos pelos israelenses de entrar nos kibutzim atacados. Desde antes dos massacres a população israelense vem protestando contra sua política catastrófica. 

A Federação Árabe Palestina no Brasil, por outro lado, não postou uma nota de repúdio sequer aos ataques terroristas do Hamas, e tem se empenhado ferozmente em justificá-los. Recentemente houve, inclusive, uma manifestação em São Paulo, promovida por esta federação, em que as pessoas cantavam seu apoio não só ao Hamas mas também ao Talibã.

É necessário o reconhecimento da legitimidade do direito de autodeterminação do povo judeu, como também do povo palestino assim responsabilizar a constante produção de grupos extremistas e terroristas que impedem uma negociação de paz e nos custam muitas vidas – aos dois lados. 

A situação é desesperançosa e a fé na humanidade está em jogo como esteve durante a ascensão do nazismo. Essa semana acordei convencida de que o Hamas venceu: que ainda estejamos falando de partilha do território agora, que um judeu tenha que justificar que não merece ser chacinado, que o Hamas tenha conseguido incitar o ódio generalizado aos judeus deixando-os com medo em qualquer parte do mundo, que ainda estejamos discutindo se o Hamas é ou não um grupo terrorista, que eles tenham conquistado os “defensores” dos direitos humanos violando completamente os direitos humanos, mesmo após terem filmado e postado seus atos terroristas tenham tido seus crimes nomeados por muitos como atos de resistência, que eu esteja escrevendo esse texto, tudo isso, é a vitória do Hamas.

Seria o caso, então, de corrigir os slogans do ativismo atual?

Mexeu com uma, mexeu com todas, A MENOS QUE ELA SEJA JUDIA 

Vidas negras importam, A MENOS QUE ESSE NEGRO SEJA JUDEU

Todas as vidas importam, MENOS AS VIDAS JUDIAS 

Parem o genocídio, MENOS O GENOCÍDIO JUDEU

O amor vence, SÓ NÃO VENCE O ÓDIO ANTISSEMITA.

Se por um lado a guerra revela o que há de pior no ser humano, por outro ela aponta para o forte senso de pertencimento da comunidade judaica, que tem se organizado em inúmeras demonstrações de solidariedade: sim, se não ajudarmos uns aos outros, o mundo não nos ajudará, como vimos tantas vezes e vemos novamente agora. 

Paradoxalmente, o único lugar seguro para um judeu hoje e sempre é Israel.

Não gostaria de terminar esse texto de forma desesperançosa, pois acho que, para o judeu, a desesperança é um luxo que não podemos nos dar. Gostaria de trazer uma notícia pouco divulgada, uma luz ao fim do túnel: três dias antes dos ataques terroristas do Hamas, um grupo de mulheres israelenses e palestinas (Women Wage Peace e Women of the Sun, respectivamente) marcharam juntas em Israel pela paz e pelo fim do derramamento de sangue. Foram mais de mil mulheres pertencentes ou apoiadoras dessas duas ONGs, mostrando-nos a força feminina na luta pelo direito à coexistência. Esse fato nos lembra, ainda, que precisamos urgentemente de mais mulheres no poder. Estamos cansadas da violência masculina e da forma fálica de governo em que os homens se colocam em disputa para ver quem será o “pai da horda”. Precisamos de soluções pacíficas. Lamentavelmente uma das organizadoras da marcha, moradora de um dos kibutzim invadidos, foi morta no ataque do dia 7/10.

Por fim, gostaria de me dirigir àqueles que percebem a total inversão de valores que estamos vivenciando. Gostaria de convidá-los a compartilhar conosco a Hatikva – Esperança – de que o Hamas não tenha vencido, afinal. Am Yisrael chai: o povo de Israel vive.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Política e Sociedade

Palavras-chave: antissemitismo, racismo, Israel, guerra, Gaza, oriente médio. 

Colega, click no link abaixo para debater o assunto com os leitores da nossa página no Facebook:

https://www.facebook.com/share/p/YRqofPDujid2x6Pj/?mibextid=K8Wfd2

Tags: Antissemitismo | Gaza | guerra | Israel | oriente médio | Racismo
Share This