Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Grandes Guerras, Pequenas Esperanças
Celso Gutfreind (SBPdePA)
Estive na Feira do Livro de Passo Fundo, interior do RS. Sinto-me, nessas horas coletivas, tão psicanalista – senão, mais – quanto nas horas de atendimento individual. Ao encontrar crianças, em torno de livros infantis, penso que estou contribuindo com a construção de um leitor de si mesmo, logo do mundo exterior. E toda análise, quando bem-sucedida, seja o que isso significa, parece promover o mesmo efeito.
A chegada foi difícil, porque o ônibus estacionou tarde na Rodoviária vazia, e eu não tinha jantado. Preferi trocar a última refeição do dia por não desmarcar a tarde do consultório. A cozinha do hotel estava fechada, o iFood do interior ignorou os meus reclames e não havia nada aberto no breu das redondezas. Fui salvo pela gentileza do recepcionista sonolento; em um toque de mágica e empatia, desencravou um pacote de Rufles que, com um pouco de imaginação, converteu-se em um banquete. Sob os sons crocantes, lembrei que em Berkeley, uma semana antes, não havia nada aberto, depois da meia-noite. Segundo Greg, um artista e museólogo que conheci por lá, a Pandemia bagunçou os negócios e trouxe, depois das mortes, pobreza e miséria aos sobreviventes. De fato, quando fui atrás de um pente para ajeitar o desacordo no cabelo, passei por vários acampamentos de moradores de rua, nas praças da Califórnia.
Em Passo Fundo, acordei em cima da hora, pois preferi trocar o café por algum sono a mais. E zarpei para a Praça Central, onde um grupo de crianças estridentemente animadas estava à minha espera. Conversei com elas. No improviso. Não costumo preparar nada para esse tipo de encontro. Lembro-me de Winnicott, com a ideia de que crianças e escritores não existem sozinhos. Então, é preciso estar disponível para o que o momento trouxer. Ali está o que há de mais precioso, como quando Stern nos alerta para o sagrado da construção de uma nova subjetividade, no presente, aqui e agora.
O encontro, de fato, trouxe histórias e perguntas. Alguém perguntou o que era um poema e isso eu achei que sabia responder. Claro que precisei de uma história. Pedi que contassem até dez. Contaram com aquela animação estridente. Aí, recitei “A Escada dos Números”, poema onde faço a mesma contagem, de forma diferente, ou seja, com imagens, prosódia, liberdade, invenções. Acho que contar de forma diferente ou maravilhada (à la Meltzer, à la Williams), é como a mãe faz do bebê um sujeito, quando oferece com voz, toque e olhar, um mediador para envelopar o que antes era a versão única, destrutiva e radical de uma pulsão. Mais tarde, em uma análise, talvez não seja lá assim tão diferente.
Claro que eu não disse, mas pensei nesse arrazoado teórico que qualquer criança conhece muito bem na prática, antes de se tornar um adulto sedento de novas teorias para encarar a ardência dos instantes. Mas a turbulência logo veio, porque as duas perguntas seguintes foram agudas, e eu não sabia responder. Uma era por que as pessoas têm as mãos mais para cima e precisam se agachar para encostar no chão, enquanto os macacos conseguem fazer isso facilmente. Calado, só fiquei ali pensando no quanto seria bom ser um macaco na hora em que preciso contar até três antes de me agachar, depois de consultar um dos ciáticos e as duas lombares.
A pergunta seguinte também foi casca. Mal me recuperava do silêncio da primeira, e veio aquela indagação de por que Jesus ficava no céu e não descia para nos dar a mão na terra. Confesso que fiquei em apuros, e sem a menor chance de citar o Bion. Felizmente, o outro existe, e fui salvo por uma garota muito séria e franzina que falou com algum conhecimento de causa:
– Ora, cada um é cada um, macaco, pessoa, Jesus!
As crianças ouviam como crianças, ou seja, com aquela atenção flutuante freudiana, entre o foco e a bagunça, a concentração e o barulho. Nessa hora, porém, houve um silêncio fulminante, seguido de um aplauso iniciado por mim. A menininha realmente merecia.
A fome de comida só passou bem mais tarde, quando aterrissei em um desses bufês calorosos do interior do Estado, onde costumam misturar cuca, pastel, polenta, croquete e coração de galinha. Mas a verdade é que eu já estava alimentado pela esperança. Era uma esperança pequena, como dizem por aqui, neste Observatório de afetos, mas, diante dos horrores de uma Guerra perpetrada por adultos, ela parecia enorme em Passo Fundo.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Cultura
Palavras-chave: Psicanálise, Literatura, Psicanálise da infância, Literatura infantil
Imagem: Celso, com crianças, na Feira do livro de Passo Fundo (RS)
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