Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Posso bater na sua porta?
Daniela Boianovsky (SPBsb)
Dia de praia em Israel. O mar é o Mediterrâneo, águas frescas e cristalinas, convidativas para equilibrar o calor forte. Enquanto me exercito na caminhada aquática que inventei, observo a diversidade rica ao meu redor: judeus e árabes israelenses coexistem naquela cena, conversando, brincando com seus amigos e familiares. Biquínis israelenses convivem com as vestes das mulheres árabes e das judias ortodoxas, todas e todos no mar, cada um a seu jeito, em seu próprio grupo. Penso no quanto aquele quadro, tão intenso e tão vivo, poderia se estender e ser a regra de convívio entre todos da região, ao mesmo tempo em que percebo a linha tênue entre aquela tolerância aparente e a potencial explosão de um conflito, ou mesmo de uma guerra, que sempre ronda as cabeças de quem habita o país. Saio do mar leve, volto pra casa feliz por ter tido a oportunidade de viver aquele momento.
No dia seguinte, ao desembarcar de férias em um outro país, levo um susto enorme ao ver as notícias daquela manhã de 7 de outubro.
As ondas cristalinas, ainda na minha memória, pareciam dar lugar às águas turvas feitas de dor, gritos, lágrimas e sangue. Numa inversão da lógica que rege as regras da natureza, podia imaginá-las desaguando no deserto e se esparramando pelas terras do Oriente Médio.
Naquele momento, recebo a seguinte mensagem de um ativista progressista brasileiro: “Você viu o que aconteceu? Israel vai reagir, vai começar a carnificina”. Chama a minha atenção a palavra “começar”. A barbárie que tínhamos acabado de testemunhar parecia ser algo irrelevante, suas vítimas, na sua maioria judias, foram, por este interlocutor, invisibilizadas. Sinto um enorme mal-estar, aos poucos percebo que o luto me foi negado, o trauma do choque que havia me deixado atônita, é desmentido. Sou convidada a apagar uma dor que sequer havia conseguido nomear, que transborda pelas areias de um deserto tingido pelo sangue. Vejo uma história se repetir, um ódio a priori e histórico que conheço e que insiste em me perturbar. Ao comentário, só consigo responder: “Estou preocupada com todos, israelenses e palestinos”.
Pergunto-me, inúmeras vezes, ao observar a reação ou até o silêncio do setor progressista, como é possível aquele que se diz defensor dos direitos das minorias naturalizar tal barbaridade cometida pelo Hamas – que sabemos ser um grupo fundamentalista islâmico radical que prega não somente a eliminação de judeus de todo o mapa de Israel, seu objetivo máximo, como também de cristãos e muçulmanos não alinhados à sua ideologia, além de ter, em sua cartilha, um programa que se opõe à defesa de qualquer minoria e à expressão de qualquer diferença. Como sustentar uma ação de tamanha crueldade como legítima defesa, sabendo-se, ainda, ter sido desferida por um grupo que confronta todos os princípios de um ativista que luta pelos direitos humanos? As perguntas se desdobram: em que medida essa pauta do Hamas, de destruição, ajudaria de fato o povo palestino na obtenção justa, necessária, e até urgente, de seu Estado? Como não perceber que cada apoio ao Hamas é um golpe às lideranças progressistas palestinas que também existem e assim ficam inviabilizadas? Como não perceber, ainda, que a ação brutal do Hamas daria início a uma guerra cruel onde o maior número de vítimas estaria justamente entre os palestinos? E mais, que é este o resultado que visa a ação terrorista que instrumentaliza as mortes de seu próprio povo para mobilizar a opinião pública que está pronta para, mais uma vez, odiar o Estado judeu? As questões não param: o teor da destrutividade do Hamas, claramente voltado para o objetivo de impor um Estado islâmico fundamentalista na região não estaria, na verdade, dando as costas às reivindicações justas do povo palestino?
A guerra movimenta paixões. Na linha de frente, sua primeira vítima é a verdade, especialmente a verdade da história e da dor de cada um. No comando dos batalhões, o protagonista é o ódio, a fúria que cega, que dilacera e nega a existência do outro.
Sabemos que nossas fantasias onipotentes são colocadas à prova desde nossas experiências primitivas de frustração. Somos tomados por um ódio primordial que não se cansa de buscar, em um objeto externo, um inimigo para o psiquismo se organizar e recriar a ilusão de onipotência e recuperação de um paraíso perdido. Enquanto odiamos, apagamos o outro. Desumanizamos e o reduzimos às impressões que acreditamos ser a realidade absoluta, deixando de lado o que não queremos ouvir. Nada mais perigoso e sedutor que uma meia verdade. Nela fundamentamos nossas crenças e aplacamos nossa consciência. O que fazer com o que ficou de fora? Fingimos não existir.
Os horrores que temos visto na guerra que já dura mais de uma semana no Oriente Médio superam a capacidade digestiva de qualquer estômago-mente-coração.
Escolho um deles para tentar adentrar nesse ódio que imobiliza nossa capacidade de pensar, e por necessitar, por motivos óbvios, organizar os estilhaços que ainda teimam em fervilhar na minha mente.
A relativização, ou até a celebração, de parte do setor dito progressista à barbárie do Hamas, atribuindo ao ato terrorista que degola, estupra, mutila, incendeia, filma e compartilha, o termo “resistência”, evidencia a facilidade e o gozo de se encontrar um alvo que dê vazão ao ódio constituinte do psiquismo humano, que neste cenário tem nome: antissemitismo, no mínimo, estrutural.
Um ódio estrutural que se sobrepõe, como um véu, à possibilidade de se perceber o jogo mortífero proposto pelo terrorismo.
O governo de Israel também é capturado por essa armadilha. Após o terror que deixou 1.400 mortos, não vê outra saída a não ser revidar o ataque, uma tragédia que agora é vivida pelo povo palestino. O bombardeio, cujo alvo são os terroristas do Hamas, provoca a dolorosa e numerosa perda de civis, e mesmo que venha a eliminar a atual militância terrorista, nada garante que será capaz de se livrar de seu espírito, de suas ideias. Ao contrário, o risco de alimentar ainda mais o ódio em que o grupo se funda é conhecido, novas lideranças poderão se formar. O terror, com outra roupa, poderá vestir o mesmo corpo, a mesma carne, as mesmas veias, que seguirão pulsando o ódio puro e desligado da pulsão de vida. Por outro lado, como exigir de um país, permanentemente ameaçado, que após sofrer ataque de tal monta pudesse pensar numa reação alternativa que não deixasse ao seu inimigo fundamentalista a impressão de fraqueza? Fica o desafio, e a esperança que encontremos, um dia, um caminho criativo, uma trilha para a inclusão das mais intensas adversidades que promova o diálogo e poupe a morte de civis como os que temos visto perecer.
A dor no Oriente Médio não obedece fronteiras, o ressentimento e a frustração estão por toda parte, o campo é propício para a divisão de sua realidade entre vítimas e algozes, levando-nos a uma simplificação que em nada nos ajuda no entendimento da complexidade dos conflitos. O fim da ocupação dos territórios de 1967, do sofrimento a que é submetido o povo palestino e o estabelecimento do seu Estado são medidas urgentes para que ambos os povos vivam em paz. No entanto, não podemos deixar de apontar a resistência de grupos radicais palestinos a legitimar o direito do Estado de Israel a existir – e até de seu povo – quaisquer que sejam suas fronteiras, assim como não podemos deixar de lado o fanatismo também presente em Israel, hoje representado na coalizão governamental na figura do extremista Itamar Ben Gvir. Mesmo sendo minoritário, ele aponta para o ódio incrustado numa parcela do tecido social do país, espelhando a ideia de exclusão do outro e dificultando as tentativas de entendimento. É crucial, para a compreensão da dor que é vivida na região, reconhecer as fortes restrições que são impostas à população de Gaza, especialmente na circulação para fora do seu território, o que nos leva a mais uma encruzilhada: que país não vigiaria fortemente sua fronteira tendo ao seu lado um vizinho que brada com todas as forças sua intenção de destruí-lo? Importante destacar que o trânsito de pessoas e de bens entre Gaza e Israel se dava com muito mais liberdade até 2007, ano em que o Hamas, após matar seus inimigos políticos (líderes e integrantes do Fatah), toma o poder e implementa sua ditadura fundamentalista islâmica.
Muito já se discutiu sobre as razões que levaram os judeus a constituírem seu movimento de autodeterminação.
A perseguição sofrida pelos pogroms perpetrados pelos países da Europa do leste, da Rússia e dos países árabes do Oriente Médio e da África do Norte culminaram no entendimento, pelo povo judaico, pela necessidade da criação de seu Estado.
A população total de judeus que habitava os países árabes da região do Oriente Médio e do norte da África, no início do século XX, era cerca de 1 milhão. O número de judeus expulsos pelo nacionalismo árabe – epílogo dos pogroms e perseguições históricas na região – foi em torno de 850.000, a maior parte tendo encontrado em Israel o refúgio possível.
Este grupo, conhecido como Mizrahim (judeus árabes), compõe hoje mais da metade da população judaica de Israel. A eles, juntam-se os judeus Ashkenazim, provenientes da Rússia e da Europa oriental, muitos dos quais, sobreviventes do Holocausto.
Após intensas lutas e conflitos entre árabes e judeus que viviam na Palestina histórica (vale lembrar que o Império Romano, visando apagar a ligação dos judeus com a região, renomeia a Judeia como Palestina), o Estado de Israel e o que seria o futuro Estado Palestino são propostos pela ONU, em 1947, em plano de partilha do território do mandato britânico. A partilha é aceita pelos judeus e recusada pelos árabes, que os entendem como estrangeiros na região embora a população judaica ali já fosse historicamente expressiva, e, conforme colocado acima, majoritariamente de judeus que sempre viveram no Oriente Médio, falavam árabe e se identificavam com a cultura regional.
Os países árabes, ao mesmo tempo, no entendimento de que aquela terra lhes pertencia em sua totalidade, apostando na política hegemônica pan-arabista, iniciaram seu movimento de oposição à presença judaica na região, declarando guerra ao Estado de Israel recém-constituído. Perdas importantes são vividas pelas duas populações, massacres fizeram vítimas nos dois lados, em torno de 750.000 árabes palestinos tiveram de sair de suas casas, alguns expulsos, outros tantos movidos pela promessa árabe de que logo voltariam.
Israel viveu uma guerra para se estabelecer, e agora trava uma outra para sobreviver. Suas perdas são enormes, cidades foram evacuadas, o som do alarme que anuncia o lançamento de outros tantos mísseis segue com intensidade no sul e no centro do país. Um povo, ao seu lado, agoniza, refém não apenas dos bombardeios israelenses, como também do extremismo do Hamas. Atividades solidárias entre judeus, árabes israelenses e palestinos sempre ocorreram em Israel, e nesses dias de guerra seguem ocorrendo, como podemos ver no exemplo da cidade de Haifa, cuja população é metade árabe, metade judia.
Até quando a voz intolerante do extremismo seguirá impedindo um acordo que respeite o direito de autodeterminação dos dois povos? Até quando a guerra será utilizada para servir aos interesses de lideranças que fazem dela seu meio de manutenção no poder?
Lamentavelmente, temos hoje em Israel um governante acusado por corrupção que se aliou a extremistas para não perder o seu cargo no comando do país e que não representa a maioria dos israelenses, conforme comprovam diversas pesquisas de opinião. Mais de 40 semanas de mobilização na luta pela sobrevivência da democracia levou centenas de milhares de militantes de todo espectro da sociedade – da esquerda à direita, de seculares a religiosos, judeus, árabes, drusos – às ruas de norte a sul, contra a reforma judicial proposta por Netanyahu, apontando para a batalha que também é travada internamente no país. Neste momento, as forças estão voltadas para a guerra contra o Hamas, mas a oposição à ameaça às minorias e aos direitos a elas garantidos pelo funcionamento independente da Suprema Corte, por exemplo, segue viva.
Nesse terreno de tantas perguntas, não podemos nos furtar a questionar o funcionamento das redes sociais e seus algoritmos: ao “confirmar” nossas crenças e cancelar aqueles que expressam sua diversidade de pensamento, não estaríamos correndo o risco de sermos reféns do ódio ao outro, seja ele pela via do antissemitismo, da islamofobia, do racismo, do machismo, da misoginia ou da lgbtqia+fobia? Estaríamos presos às certezas paralisantes movidas pelo desejo de pertencimento e organização simplista da realidade? Ao ver o silêncio seletivo diante da barbaridade ou a concordância adesiva de muitos às desinformações que distorcem o que ocorre no Oriente Médio, constato, uma vez mais e com tristeza, a arquitetura que possibilitou o acontecimento do Holocausto. Quem hoje, de nossos amigos, nos esconderia no sótão de sua casa?
Precisamos ser capazes de abrir mão do poder ilusório trazido pelo ódio. Se nessa guerra tão sofrida, ao invés do fortalecimento do fanatismo pudermos ver, em algum momento, a preponderância da capacidade de pensamento, da escuta da dor e do sonho do outro, teremos vencido todos, israelenses e palestinos. “Vencido” talvez não seja bem o termo, já que o que tem ocorrido é a dor e a derrota da dignidade humana por todos os lados, mas ao menos teremos tido a possibilidade de sair dessa repetição mortífera que as disputas na região sempre nos trouxeram.
Continuo longe de Israel, tomada pela angústia, pela dor e pelo desespero de ver tantas perdas nos dois povos. O cenário deste momento não é aquele lúdico que pude ver na praia, agora a água salgada que cada um sente é a que escorre por suas faces. A ambivalência é de quem sente o alívio por estar longe, e por isso segura fisicamente, mas angustiada por não estar perto de amigos e da rede solidária que se forma no país.
Certamente, o testemunho que trago tem o contorno da minha própria subjetividade, e a partir dela penso na potencialidade que um acontecimento radical nos oferece para reflexão e mudança. Que israelenses e palestinos ainda possam, em sua maioria, ser capazes de escutar e respeitar reciprocamente as suas narrativas. Como disse acima, se essa guerra nos livrar da cegueira que nos acomete o fanatismo, teremos vencido uma batalha.
Sonho? Que as guerras não nos levem também nossa capacidade de sonhar…
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Política e Sociedade
Palavras-chave: Antissemitismo, Israel, Palestina, Guerra
Imagem: Foto da escultura de Ben Gurion, plantando bananeira na praia de Tel Aviv. O mundo “de cabeça pra baixo”…
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