Observatório Psicanalítico – OP 431/2023

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Até quando prevalecerá a insanidade no Oriente Médio?

Julio Hirschhorn Gheller (SBPSP)

Tenho parentes em Israel. Uma prima me contou, arrasada, que teve a casa assaltada, depredada e vandalizada. Alguns de seus sobrinhos foram recrutados pelo Exército, gerando medo e tensão na família. Parentes de minha esposa tiveram que abandonar um kibutz que foi destruído para se abrigar, ao menos temporariamente, em um hotel. Compreendo e me solidarizo com a dor que estão experimentando, mas me sinto à vontade para tentar colocar opiniões realistas.

O ataque de 07/10/2023, perpetrado pelo Hamas, teve requintes de crueldade. Focar em alvos civis, tanto para matar quanto para sequestrar, caracterizou uma ação terrorista de brutalidade hedionda. Todas as análises indicam que o ataque vinha sendo preparado durante meses, quem sabe anos, sob orientação e com a ajuda financeira do Irã. Tanto o Hamas quanto a ditadura do Irã pregam o fim de Israel, que deve ser riscado do mapa. Assim, todo indivíduo israelense passa a ser visto como um inimigo em potencial, que precisa ser atacado e eliminado. Foi o que vimos, estarrecidos com a intensidade da fúria que surpreendeu a população de Israel, de vez que a inteligência militar não funcionou para detectar os preparativos do ataque do Hamas, mesmo que alertas do Egito tenham sido comunicados ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu.

Se pensarmos na longa história do conflito do Oriente Médio alguns pontos são relevantes. Primeiramente, o compreensível desejo dos judeus de, após o horror do extermínio levado a cabo no Holocausto, estabelecer-se em um país que pudessem chamar de seu. 

Evidentemente, os palestinos se sentiram deslocados com a criação do Estado de Israel e a concórdia nunca prevaleceu de forma consistente na região. No passado, houve lideranças que se dispuseram a tratar da paz e assinaram os Acordos de Camp David em 1978: Begin por Israel e Sadat pelo Egito, que dividiram o prêmio Nobel da Paz. Não por acaso – e para evidenciar a resistência ao tema – Sadat foi assassinado por membros da Jihad Islâmica do Egito em 1981. 

Posteriormente, com novos atores em jogo, foram assinados os Acordos de Oslo em 1993. Por este trabalho meritório também receberam o prêmio Nobel da Paz, em 1994, os israelenses Yitzhak Rabin, primeiro ministro, e Shimon Peres, ministro das Relações Exteriores, bem como Yasser Arafat, líder palestino. Desta vez, o inconformismo radical atingiu Rabin, que, em 1995, foi assassinado por um extremista israelense logo após ter discursado em prol da paz perante uma multidão de 100.000 pessoas em Tel Aviv. O tema do extremismo e de forças retrógradas, lamentavelmente presentes em boa parte da população israelense, me conduz para tempos mais recentes.

Bibi Netanyahu é o político que por mais tempo ocupou a posição de primeiro-ministro de Israel. Desde o início de sua trajetória foi um representante da direita, mas nos últimos anos derivou para a extrema-direita, aliando-se a grupos religiosos ultra ortodoxos e membros do que existe de mais radical no espectro político do país. Estes são os apoios que sobraram para sustentá-lo no poder. Ameaçado pelo surgimento de indícios que o apontavam como beneficiário de manobras corruptas – que o levariam para a prisão no caso de condenação – passou a agir com vistas a cercear a ação do Judiciário. 

Tal atitude gerou expressivos protestos da grande parcela do povo israelense que preza a democracia, confiante em uma Suprema Corte que possa contrabalançar os desmandos do Executivo. Neste clima de polarização e instabilidade institucional deu-se o ataque do Hamas, que evidenciou uma enorme falha dos serviços de segurança, antes tidos como de primeira classe. Tudo indica que Bibi menosprezou o poderio bélico do Hamas, como se a situação da faixa de Gaza estivesse sob controle e totalmente dominada. Aliás, há interpretações de que até estimulou o crescimento do Hamas para reduzir a influência da Autoridade Palestina – que reconhece a existência de Israel – como estratégia para evitar conversações que contemplassem a formação de um Estado palestino. A justificativa de que não poderia tratar com um grupo que se recusa ao diálogo e pretende acabar com Israel veio a calhar, permitindo-lhe desviar-se da mais importante questão a ser priorizada. O fato é que por todos esses anos em que vem comandando o governo de Israel, especialmente de 2009 a 2021, e agora, desde dezembro de 2022, Netanyahu jamais se empenhou em trabalhar por negociações de paz. A faixa de Gaza permaneceu como uma área cercada e submetida a severas restrições econômicas e a política de ocupação por assentamentos piorou o clima de ódio dos oprimidos em relação ao colonizador. Bibi desprezou o quanto a atitude de desconsiderar os direitos do povo palestino implicaria em termos de acirramento de ânimos contra Israel. Deu no que deu. O conceituado jornal israelense Haaretz apontou Netanyahu como o grande responsável pela tragédia de 07/10.

Agora foi criado um governo de unidade nacional, integrando representantes da oposição, para enfrentar a emergência desencadeada pelo terrorismo do Hamas. Israel viu-se na contingência de reagir e o está fazendo de forma violenta, que atinge civis palestinos, não necessariamente membros ou simpatizantes do Hamas. Há uma tentativa de estrangular a faixa de Gaza, cortando o abastecimento de água, energia elétrica, mantimentos, medicamentos e combustíveis. Ao tempo que escrevo vejo manchetes na internet sobre uma ordem de Israel para que os palestinos abandonem o norte da faixa de Gaza em 24 horas. “Como e para onde?” eu perguntaria. Esta conduta dá margem a críticas que falam claramente sobre a prática de crimes de guerra. A retaliação é movida por impulsos de defesa, mas também, por desejos de punição. Em consequência, já se teme a entrada do Hizbollah – outra organização paramilitar fundamentalista islâmica – na guerra, implicando uma escalada crescente da violência.

Estamos na vigência da destrutividade levada ao extremo. O “Mal-Estar na Cultura” de Freud continua atualíssimo. A frase de Hobbes é certeira: “o homem é o lobo do próprio homem.” A barbárie mobilizada pela pulsão de morte impera.

O que esperar de um conflito entre fanáticos do Hamas de um lado e, do outro lado, um líder político populista que segue a cartilha de uma extrema-direita radicalizada?

Há vozes respeitáveis que defendem a imediata renúncia de Bibi para que uma nova liderança assuma o governo de Israel desde já. Por enquanto, ele parece resistir e talvez se mantenha no poder até que uma situação de mais calma – ainda imprevisível – sobrevenha. Contudo, seu futuro político está praticamente selado, devendo responder pelas falhas no campo da segurança, pelos ataques à democracia e por seu envolvimento em esquemas de corrupção.

A comprovação que resulta óbvia é que não há como garantir uma sobrevivência tranquila para os habitantes de Israel sem a criação de um Estado palestino. A enorme dificuldade para o estabelecimento de um acordo de paz significa o indiscutível predomínio da insanidade. Oxalá eu ainda possa ser testemunha de tempos melhores. 

Os acontecimentos desta semana de outubro me remeteram ao contato com as primeiras noções de judaísmo, que foram apreendidas em família. Sou filho de pais que perderam tudo na Segunda Grande Guerra e vieram para a América do Sul para recomeçar do zero. Eles me contavam histórias de perseguições e antissemitismo. Inicialmente, não puderam vir para o Brasil, onde minha mãe tinha família, pois havia sérias restrições impedindo a entrada de judeus. Daí que tiveram que esperar por alguns anos no Uruguai, onde nasci, até que surgisse a permissão para a imigração. Em criança, escutei assustado os gritos do meu pai, que, em seus pesadelos, revivia o trauma da guerra. O tema da identidade judaica se impunha como um dever de lealdade às origens. Contudo, a partir da adolescência, comecei a me dar conta da complexidade do ser humano e pude relativizar a imagem do judeu como eterna vítima. A constatação das posições agressivas tomadas por Israel era inequívoca. Entendi que vítimas também se tornam algozes e oprimidos se tornam opressores. 

Minhas concepções tiveram que passar por uma reconfiguração, com a modificação do pensamento maniqueísta de que o bom é sempre bom e o mau é sempre mau. Uma espécie de sentimento de culpa inconsciente me lançou em busca de condutas de reparação e talvez este tenha sido um motor do meu percurso em direção à Psicanálise. 

Desde o último 07/10 observamos que, atacados de forma brutal, os israelenses foram, em grande parte, tomados de cólera vingativa. As virtudes do povo judeu coexistem com seus defeitos, assim como ocorre com todos os seres humanos. O conflito da ambivalência está presente em todos nós; somos habitados tanto por misérias como por grandezas. Utilizar a capacidade de pensar emoções tão extremadas é o que nos possibilita escapar das armadilhas geradas por posições paranóides.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Política e Sociedade

Palavras-chave: destrutividade, extremismo, fanatismo, insanidade, pulsão de morte 

Imagem: Pichação de estrela de Davi na entrada de um prédio em Berlim, na Alemanha – Reprodução/X. Folha/Uol

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Tags: destrutividade | extremismo | fanatismo | insanidade | pulsão de morte
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