Observatório Psicanalítico – OP 425/2023

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

Os sem propostas

Sylvain Levy (SPBsb)

Depois dos sem-terra e dos sem-teto chegou a vez dos sem- propostas: os partidos e os que se dizem de esquerda ou progressistas.

Os resultados das eleições na última década, notadamente no período 2016 a 2021, evidenciaram o crescimento dos partidos de direita e centro-direita como uma tendência mundial. Ao que tudo indica as propostas das esquerdas e dos progressistas se esvaziaram ou porque já foram alcançadas e incorporadas ao ideário dos governos, ou porque não trazem mais um apelo compreensível e aceito pela população. A luta por redemocratização ou simplesmente para resgatar e manter os princípios democráticos é um esforço que parece ter-se esgotado com as vitórias nas eleições enquanto que, ao menos no caso brasileiro, precisaria ser assumida como tarefa permanente, posto que a direita, notadamente a extrema direita, tem propostas contínuas para a desestruturação do estado e a desestabilização da democracia.  

Isto pode ser constatado pelos processos em curso no Supremo Tribunal Federal e pelas condenações decretadas para os invasores dos prédios dos três poderes, classificados de golpistas ou patriotas, segundo o espectro democrático a que se filiam e, ainda, a última pesquisa do Datafolha que aponta uma escolha pela polarização, pois 25% se classificam como bolsonaristas e 29% como lulistas.  

Motivações externas que possam estimular apelos à esquerda estão rareando, pois alguns países europeus já chegaram a um estado de bem-estar social (antiga plataforma da esquerda social-democrata) que os empurram para outros objetivos, dentre os quais a luta contra o terrorismo e as “invasões” imigratórias podem ser a imagem. Em outros, as questões voltadas para o pleno emprego, para a gestão eficiente dos programas sociais, do desenvolvimento sustentável, da ecologia e do ambiente dominam as preocupações

O mundo globalizado é um mundo narcísico. Cada país se ocupa de seus assuntos. Dos lemas universais sobraram a ecologia e a defesa do ambiente. Os gritos  antibelicistas foram soterrados na Ucrânia.

Na Ásia, com a situação híbrida da CCC – China Comunista-Capitalista e também do Vietnã, o ideário comunista que embasava os partidos de esquerda do continente praticamente desapareceu.

A África, com honrosas exceções, cuida de resolver seus problemas de corrupção, de guerras tribais, de golpes de estado por militares insurgentes e de fundamentalismos dos mais variados matizes. Já vão longe as discussões teóricas e pragmáticas sobre o colonialismo e o imperialismo europeu. Os gritos pela sobrevivência estão a falar mais alto.

O Oriente Médio é, provavelmente, a região que mais cedo foi se retirando das posições esquerdistas. Os países que propunham um nacionalismo árabe, como o Egito, foram migrando para regimes ditatoriais e Israel, a única democracia na região, foi sendo progressivamente ocupada pelo Likud (hoje associado à extrema direita), se distanciando dos princípios do sionismo socialista que estavam no cerne de sua criação, deparando-se atualmente com a proposta antidemocrática do executivo de suprimir o equilíbrio entre os poderes. 

A América Latina viveu nos últimos anos uma confusão político-ideológica, onde governos que se diziam de esquerda propiciaram ganhos fantásticos aos bancos, instituições financeiras e grandes capitalistas, além de agirem como governos demagógicos populistas em lugar de agentes das transformações econômicas e sociais tão propugnadas pelas esquerdas. O resultado foi não só a afetação dos indicadores econômicos como a identificação dessas reduções com as ideologias de esquerda e o crescimento e fortalecimento das ideias conservadoras, a ponto de no Brasil se defenestrar uma presidente democraticamente eleita, se eleger um representante da mais tosca direita radical e se defender abertamente um retorno ao regime militar.

O quadro geral na América do Sul apresenta-se com nitidez peculiar. Lula foi eleito no Brasil, mas o Parlamento se coloca bem mais à direita que o executivo o que prenuncia dificuldades e hibridez administrativa. A Argentina em seu inferno eterno corre riscos de ser abduzida por uma direita reacionária ao extremo e o Equador encontra-se às voltas com golpes institucionais e violência instituída. Paraguai sob nova direção e mesmas práticas. 

Nos Estados Unidos a eleição de Donald Trump e a vitória dos republicanos para as cadeiras do Senado e da Câmara podem ser consideradas a cereja do bolo desse movimento pró-conservadorismo. Mas isso também revela o quanto as populações estão suscetíveis aos apelos de isolacionismo, xenofobia, busca de bodes expiatórios, intolerâncias e expressões de raiva e violência. O risco dessa dinâmica política desembocar em novas aventuras nazi-fascistas existe. A guinada para a normalidade democrática com a posse de Biden e as acusações contra Trump não escamoteiam o fato de que cerca de 30% dos americanos ainda acreditam que a eleição de 22 foi fraudada. 

O esfacelamento da União Soviética e o desaparecimento ou renomeação de alguns partidos comunistas (Brasil e Itália são exemplos) também contribuíram para um desnorteamento das esquerdas (perda de norte, mesmo) e principalmente, a inexistência na atualidade, de palavras de ordem que unifiquem as propostas, como aquelas que dirigiam as ações e causavam forte apelo e adesão popular, dentre as quais: Anistia ampla, geral e irrestrita – Diretas Já – Saúde, direito de todos e dever do Estado. Essa lacuna retirou dos partidos de esquerda e das instâncias mais progressistas as ideias e tendências que conformavam um ideário compreensível e principalmente aceito pelas comunidades, pois iam ao encontro de suas aspirações.

Lembrando Bion, cabe ressaltar a diferença entre o vazio (no-thing) e o nada (nothing). O vazio (onde estava o objeto, nesse texto o objeto é a ideia representada pela palavra de ordem) pode apontar tanto na direção do colapso (estagnação ou retrocesso) como na erupção de novas ideias. Infelizmente para o momento atual, equiparo esse estado de mente de possibilidade multipolar à situação política. Considero que a fusão entre o nada e o vazio pode carrear a sociedade para a mudança catastrófica apontada por Bion.

Concretamente a catástrofe dos últimos quatro anos, não levando em conta qualquer ideologia, marcados com a ascensão dos movimentos de ódio, do negacionismo, da cultura narcísica, das polarizações, da ética do medo, da produção de fake news e fake facts (apropriação de noticias verdadeiras para construção de falsas ocorrências), demonstram qual o caminho, dentre os referidos por Bion, está sendo trilhado. 

Podemos pensar que o fim da URSS e da guerra fria somado à emergência de uma nova potência mundial – a China, que prioriza os negócios e não a ideologia, colaboraram para o esmaecimento da noção de esquerda e direita, mesmo que os ideais humanistas, de igualdade e de solidariedade tão caros à esquerda tenham permanecidos inalterados. 

Mas não bastam ideais sem ideias. E ideias sem sequência e consequência, sem propostas para sua concretização equivalem ao kantiano “emoção sem razão é cega e razão sem emoção é estéril”.  A ausência de proposições, temas e lemas que galvanizem os indivíduos e os façam pensar como cidadãos, por si só já é suficiente para ser pensada como uma das causas para o distanciamento entre a população e os partidos de esquerda, entretanto, deve se atinar também com a falta de um elo de comunicação com a sociedade, pois as ideias vêm do povo e aos partidos e políticos cabem captá-las e com elas sintonizar e ampliá-las nos fóruns políticos e de governo.

Já no Projeto, em 1895, Freud dizia que a comunicação é um processo que se retroalimenta e usava o modelo mãe-bebe para exemplificar. Se acrescentarmos a ideia de identificação projetiva de Klein podemos chegar à comprovação de que o vínculo entre propostas e população, ao menos no diz respeito às esquerdas, está rompido ou é inexistente e não consegue estabelecer a fundamental retroalimentação. A exceção dessa afirmativa fica por conta do que ocorre periodicamente nas eleições, mas sem a rotina da continuidade, essencial a qualquer movimento de massa. 

Em 1926, quando Hitler começava sua trajetória rumo ao poder e a Alemanha não se nutria de proposições majoritariamente aceitas, Freud relacionava o vazio mental (um continente sem conteúdos) a angústia sinal que 40 anos depois Bion fazia evoluir para  terror sem nome. E quem sabe, se a partir da percepção que existe esse vazio de propostas possa acontecer nas mentes uma angústia transformadora capaz  de evoluir para uma provocação individual e contribuir para  gerar alguma alteração da dinâmica coletiva e por consequência, na sociedade.     

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Política e Sociedade 

Palavras-chave:  proposta zero, mobilização, o vazio e o nada, comunicação deficiente, mundo globalizado, mundo narcísica

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Tags: comunicação deficiente | mobilização | mundo globalizado | mundo narcísica | o vazio e o nada | proposta zero
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