Observatório Psicanalítico – OP 426/2023

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

Medicina de calças baixas

Mayarê Baldini (SPBsb)

Quando eu nasci, fui registrada com um nome indígena. A origem da palavra é Kayapó, do sul do Pará, e quem “deu ganho” nela foi uma jovem médica residente em Pediatria. Enquanto cuidava da saúde de criancinhas indígenas, ela anotava numa lista suas palavras favoritas, oriundas de diversas etnias. Um pedacinho de papel que ela guarda ainda hoje com o maior esmero. 

Da lista, veio o meu nome. A jovem médica era minha mãe. 

Imaginem vocês a paixão pela Medicina, pelo cuidado, pelas crianças, pela alteridade, para tirar daí o nome da cria. 

Cresci testemunhando a correria da médica de postinho mais querida das redondezas. Peço desculpas aos “doutores” cujas trajetórias passam pelos trajes sociais, pelas grifes, consultórios com recepções de mármore, mas a ostentação nunca foi muito a nossa praia. Com essa prática, não tivemos proximidade. Minha mãe trabalhava na atenção básica, em mutirão, de tênis e cabelo preso em rabo-de-cavalo. 

As marcas dessa profissão, pela qual construí certa ternura, foram compondo minha história de um jeito brincante: nascer num hospital do SUS; explorar curiosa os fenômenos de uma geringonça chamada estetoscópio; ver longos jalecos desfilando pelos corredores e sentir naquilo algo familiar; ser fã do Zé Gotinha e ter orgulho do cartão de vacinas preenchido tal qual fosse um álbum de figurinhas. 

Porém, vamos interromper o romance e cortar para 2023. 

Cortar mesmo. Quebrar. Despedaçar. 

Vejo a minha mãe atônita. Violada.

A retina arranhada pela cena:

Quadra de vôlei. Acadêmicas da Medicina distribuídas em duas equipes competem em jogos universitários. Moças de tênis, cabelos presos em rabos-de-cavalo. Nas arquibancadas, colegas de curso – homens – baixam as calças. Num pacto que só o pior da masculinidade é capaz de produzir, iniciam uma masturbação coletiva. 

No vulgo: punhetaço. Na letra do crime: importunação sexual. 

Tudo está profanado. As colegas. A profissão. A universidade. O esporte. Nada sai ileso quando a violência do machismo se impõe.

A Medicina misógina não é exatamente um lançamento dessa geração universitária. Os crimes sexuais praticados por médicos são numerosos, noticiados há décadas, alguns bastante conhecidos. Mas, de forma geral, havia um padrão: aconteciam em segredo e eventualmente uma denúncia vinha revelar o criminoso. Não raro, depois de um caso exposto, outras pacientes vítimas do mesmo profissional se encorajavam a finalmente prestar queixa. Com sorte, alguma punição se seguia. 

Agora, a novidade surge despudorada. A violência do poder médico sobre os corpos de nós mulheres surge para as câmeras, diante de todos, num ginásio. Sem constrangimento. Engraçadinha, bem à vontade. 

Em choque, junto com minha mãe, me perguntei: qual blindagem assegura esses rapazes de que nada lhes poderá prejudicar, ainda que escolham expor publicamente suas condutas de abuso? Que força é essa? Que poder é esse?

Um pouco de blindagem de gênero, por ser homem. Um pouco da categoria: ser homem, estudante de Medicina. Um pouco da classe social: ser homem, estudante de Medicina, faculdade particular caríssima.

A construção de um senso de invencibilidade para os rapazes que seguem essa carreira começa muito cedo, desde os cursinhos pré-vestibulares. O sacrifício é regra para a maioria das pessoas acessarem o curso universitário – senão pela concorrência, por muitíssimo dinheiro – e, uma vez conquistada a vaga, eis a redenção: está conquistado o lugar entre os deuses do Olimpo. Os trotes, os ritos, o engrandecimento maníaco já começa a se fermentar ali, nas origens.

Jantares com corporações, empresas de formatura milionárias, registros fotográficos profissionais a cada etapa. A metade do curso é celebrada com uma festa, pois se tornaram “meio-médicos”. As redes sociais dos chamados “mediciners” são produzidas profissionalmente, muitas vezes com patrocínio dos pais, desde os primeiros semestres de formação em busca por notoriedade. 

Camadas e camadas de fotos, de likes, de popularidade, de concorrência. Vaidade, dinheiro, prazer, superioridade. De certa forma, punhetas. A olhos vistos.

Na intimidade da formação acadêmica, tudo isso parece passar despercebido quando se discute ética profissional. Escuta-se dos estudantes mais sensatos relatos de violências conduzidas pelos próprios preceptores nas práticas de internato: incentivo a suturas sem anestesia quando o paciente está dando trabalho, toques retais feitos por vários alunos em uma mesma paciente para reconhecerem um tumor, uso do fórceps numa gestante desnecessariamente para “pegar experiência”, entre outros comandos autoritários sem levar em conta o bem-estar do paciente. O corpo da pessoa atendida sacrificado para a realização profissional do estudante. 

Sábado passado, depois de passar por uma cirurgia de emergência para retirar o apêndice, uma prima de quinze anos me confessou: “a parte que mais me deu medo foi saber que meu pai não poderia ficar comigo enquanto eu estivesse anestesiada”. 

A combinação entre abuso de poder médico e cultura do estupro é mesmo aterrorizante. 

Quem não ficaria com medo?

Quem vai cuidar de nós, mulheres?

Deixo junto com este ensaio uma foto de minha mãe trabalhando no início dos anos 90, quando eu ainda era um bebê. No meu imaginário, a Medicina se constituiu assim, como nesse registro: prática de cuidado feito por mulher e um pouco misturada com o que testemunhei sobre a maternidade dela. 

Fartura, oferta, cansaço, colo, esforço, compressa, jeitinho, termômetro, bronca, soro caseiro, xarope. 

Fico pela preservação dessa delicadeza. 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Política e Sociedade 

Palavras-chave: Medicina, Punhetaço, Misoginia, Poder médico, Cultura do estupro.

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Tags: Cultura do estupro. | Medicina | misoginia | Poder médico | Punhetaço
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