Observatório Psicanalítico – OP 420/2023

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Onda Negra, Medo Branco em Território Psicanalítico*

Maria José Tavares Barbosa Irmã e Cristiane Mota Takata (SBPSP)

Estas reflexões foram escritas logo após nosso retorno do 5° Congresso de Psicanálise de Língua Portuguesa, sediado em Salvador, Bahia – Brasil. Então, os leitores irão encontrar referências a acontecimentos sociais concomitantes às violências ocorridas no CPFL na época, nos quais notamos a mesma lógica de silenciamento da branquitude.

Ficamos extremamente angustiadas e aterrorizadas com tudo que aconteceu naquela ocasião. Registrar esse momento foi uma forma de metabolizar tamanha experiência. No entanto, o tempo passou e parecia haver se perdido o sentido de publicar o relato por conta do silenciamento orquestrado desde então. Chegamos a pensar: “Nosso texto sucumbiu ao medo do branco? Seremos agredidas diante dessa lógica colonial pulsante e nefasta que nos rodeia diariamente?”

O tema do congresso foi retomado recentemente aqui no Observatório Psicanalítico, portanto decidimos que era chegada a hora de noticiar nossa experiência.

O dedo em riste. O tom de voz elevado. A ordem: “Não admito! Retire o que disse!“.

Um dos atos violentos ocorridos no 5° Congresso de Psicanálise de Língua Portuguesa, sediado em Salvador, Bahia – Brasil, entre 24 e 26 de abril de 2023.

Atos violentos que, desde então, seguem difíceis de serem elaborados por nós, um pequeno grupo de Membros Filiados ao Instituto Durval Marcondes, da SBPSP, presentes neste evento.

O 5° CPFL foi extremante importante para nós: a presença negra no evento fez toda diferença pois todos puderam perceber que os negros/as/es têm voz e saberes autênticos a compartilhar também no campo psicanalítico.

As contribuições trazidas por nossos colegas de Moçambique e dos demais países participantes foram riquíssimas e desejamos que a 6a. edição do CPLP seja ainda mais potente que essa.

É certo que, de Salvador, trouxemos muitas vivências que serão parte de nossa jornada de aprendizado, dentre elas, a urgência em construir algum entendimento comum sobre o silenciamento nefasto da branquitude frente a atos racistas que não param de se suceder: do “comediante” sem graça que equipara escravização a trabalho digno, aos europeus neofascistas que elevam seus braços em gesto nazista enquanto atacam o atleta Vinícius Jr., excluídas das manchetes as incontáveis pessoas não-brancas diariamente exterminadas mundo afora.

Nessa tentativa de elaboração, começamos com uma pergunta aos colegas psicanalistas presentes no CPLP: vocês ficaram incomodados com o que ocorreu ali?

Já na abertura do Congresso, uma psicanalista, branca, europeia, ensaiou uma tentativa de erguer sua mão entrelaçada à da atual Presidente da FEPAL, a psicanalista Wania Cidade (SBPRJ), num gesto que representaria a união e a pacificação, concluindo que “é apenas disso que precisamos” (sic).

É também essa colega vinda de além-mar que, somente no terceiro e último dia do Congresso, nos conta ter se surpreendido com a proeminência do tema Racismo,  tão amplamente abordado no evento intitulado: “Escravidão e Liberdade: travessias do corpo e da alma”.

Não lhes parece estranho?

Ou é “somente” a branquitude mantendo seu status quo do pacto narcísico (Bento, 2021), sustentado por seus privilégios materiais e simbólicos como sempre fez e continua fazendo?

Propositivamente, também destacamos a apresentação do trabalho realizado pelo grupo Sankofa, do qual uma de nossas colegas faz parte. O grupo Sankofa, para quem não o conhece, é um grupo de estudos sobre Psicanálise e Racismo, composto por analistas negros/as/es, filiados a Institutos de Sociedades vinculadas à IPA, a saber, SBPSP, SBPRJ e SBPdePA, e coordenado pelo psicanalista Ignácio A. Paim Filho.

O trabalho do grupo – “Tempo de Instaurar Conflitos: travessias do corpo e da alma”, escrito por cinco mulheres negras, provocou a inquietação que o Sankofa esperava e com a qual sabia que teria que lidar: era necessário conclamar a branquitude a assumir responsabilidade na concretização de ações antirracistas para além do moroso “reconhecemos a dor do negro, nos compadecemos, mas, sabe como é, trata-se de um processo, vamos tentando, um dia melhora…”.

Talvez por isso mesmo, o Congresso tenha, sintomaticamente, se tornado palco de atravessamentos tortuosos: como o pouco espaço de fala que os estudantes intercambistas de África, integrantes do projeto UNILAB (Faculdade de Letras da UFBA), tiveram no Congresso.

Com seus tempos de fala exíguos comparativamente aos de outros palestrantes convidados, esses jovens negros foram postos na embaraçosa situação de sair às pressas do evento, sem terem a oportunidade de interagir com os demais presentes devido a “mal entendidos” entre a organização do evento e a coordenação da UNILAB – o “mal entendido” não foi originado pela organização do Congresso, mas esta também não se deu conta, previamente, que aceitar a proposta de retirar os alunos do evento ainda em curso resultaria, concretamente, em restringir o espaço e a interação desses convidados.

Ao questionar, legitimamente, o quê de racismo sistemático e estrutural poderia ter a ver com essa “coincidência” de que justo com os jovens estudantes negros tenha ocorrido o “mal entendido”, explicitou-se o Conflito.

De forma didática, desvelou-se o já conhecido mecanismo: a Presidência da Febrapsi sentiu-se instigada a “defender os seus” (sic) abrindo caminho para que outros psicanalistas da plateia se sentissem encorajados a apontar o culpado pelo mal-estar: “Culpa do Ignácio!” – coube a ele ser feito depositário da violência da branquidade, tão bem ilustrada pela psicanalista branca que levantando da plateia, com o dedo em riste (como uma chibata?), desferiu palavras que expressam um ódio peculiar a tudo que somente uma pessoa negra representa, não importa o quão brilhante e bem sucedida seja.

Só as pessoas negras sabem o custo de tornar-se negro no Brasil, como bem aponta Neusa Santos Sousa (2021): “a descoberta de ser negro é mais do que a constatação do óbvio (…) é sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar a sua história e recriar-se em suas potencialidades. Ser negro não é uma condição dada, a priori. É um vir a ser. Ser negro é tornar-se negro” e, com isso, ficar exposto a uma branquidade sempre pronta a atacar.

O ápice da violência, não surpreendentemente, é expresso pela voz colonial: “Você, Ignácio, é quem está sendo racista. Muito racista!” (sic).

Racista? Por ter se posicionado contra os atos racistas sucedidos ao longo do Congresso? Racista, mesmo generosamente tendo concordado em retirar quaisquer palavras que tenham ferido a sensibilidade social daquela que não hesitou em ordenar que se calasse? Racista, mesmo tendo dito diversas vezes que segue sempre atento a seu passado tão presente, de alguém que sabe que precisa observar-se em relação ao próprio racismo?

Certamente Ignácio não precisa de defesa e não estamos aqui para isso. Sua brilhante produção como Psicanalista e como homem comprometido com o movimento negro dispensa nossa intervenção.

Desejamos sim nos colocar em defesa de uma capacidade ética e política da branquitude que se autointitula antirracista, onde não cabe a omissão, o silêncio e, muito menos a violência das tentativas de silenciamento.

Objetivamente: dentre os analistas brancos e mais experientes ali presentes, nenhum tomou a palavra e repudiou, ativamente, quaisquer desses atos de violência racista.

Coube a uma psicanalista experiente, negra, explicar a estrutura racista: Wania Cidade ponderou que, por muito menos, se um dia tivesse uma atitude violenta como aquelas que acabáramos de testemunhar, certamente teria sido retirada da Sociedade da qual é membro.

Vocês têm ideia do que é isso?

Conseguem alcançar o nível de complexidade do que é ser negro dentro de nossas Instituições? Se um único branco lê a atitude de um negro como um deslize, a branquitude não hesita: mal fala, mal vê, exclui. Joga o negro para fora dos espaços dos quais considera-se a única titular, incluindo nossas Instituições Psicanalíticas.

Sejamos honestos: isso não é paranóia.

Por isso, é legítimo (e urgente!) perguntar:  onde está a branquitude capaz de um pensamento crítico e aliadaà causa antirracista? Aliada à causa antirracista  e não às pessoas negras aqui representadas por Ignácio, Wania e os jovens estudantes da UNILAB.

Nas palavras de Ignácio A. Paim Filho em seu livro “Psicanálise e Racismo: a saída da grande noite” (2023, p. 53), “o eterno silenciamento, orquestrado pela cultura eurocêntrica, quanto à sua participação na gênese e na manutenção do racismo, com suas diversas formas de negação – revelado e trabalhado pelos movimentos negros, desde a diáspora forçada da África – , rompe-se, por meio de uma adequada instrumentalização, da pulsão de morte, orientada pela força da libido, às trincheiras narcísicas implantadas pela branquitude“.

É urgente criar dispositivos antirracistas para lidarmos com violências como as que testemunhamos diariamente, tão “naturalmente” reproduzidas no CPLP.

Se quisermos de fato aprimorar as nossas instituições, temos que nos posicionar, como diz Daiane dos Santos – nossa grande campeã olímpica – “Não cabe só a nós pessoas pretas falarmos, cabe a todos nós, pessoas, brancas, pretas de todas as cores” – temos que mudar o status quo branco centrado e racista que, infelizmente, são as nossas instituições. Isso não se faz apenas com indignação, se faz com escuta, atitudes e ações concretas.

* Em referência à obra “Onda Negra, Medo Branco: o negro no imaginário das elites – Século XIX”, de Célia Maria Marinho de Azevedo

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Instituições Psicanalíticas; Vidas Negras Importam

Palavras-chave: silenciamento, pacto narcísico, branquitude, negritude, psicanálise

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Tags: branquitude | negritude | pacto narcísico | Psicanálise | silenciamento
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